Desde que Caetano Veloso ganhou de presente o livro Minha formação, do abolicionista, político, diplomata e escritor pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910), ele não tirou da cabeça a vontade de pautar seu novo disco com temas que lembrassem a escravidão como uma das características mais entranhadas na cultura nacional. Noites do norte, título tirado de um trecho do citado livro, fala explicitamente do assunto em três canções e de forma mais camuflada em duas outras. É um destes álbuns que farão história na música popular brasileira, tal a inteligência na concepção, a beleza e elegância musicais e a verve poética do compositor e cantor baiano, que novamente reacende os holofotes sobre si. Ele não gravava um disco autoral de tamanha qualidade desde Circuladô (1991). Também passou três anos longe dos estúdios, depois do lançamento do hermético Livro (1997), compensado por dois álbuns ao vivo mais palatáveis, Prenda minha (1998) e o ótimo Omaggio a Federico e Giulietta (1999).

Neste período, Caetano dedicou-se mais ao brilho da voz do que ao trabalho de lapidar as próprias canções. Fina estampa (1994), por exemplo, com repertório só de boleros, rumbas e guarânias famosos, faz jus ao nome e sem dúvida deve ser colocado na lista dos melhores álbuns de intérprete. O mesmo pode-se dizer em relação ao trabalho que homenageia Fellini e sua mulher. Só que já estava na hora de o leão sacudir a juba. E já veio rugindo. Na segunda-feira 11, ele lançou o disco pela internet rebocando um release no qual destila todas as intenções. Em suas próprias palavras, Caetano Veloso é uma vedete e para tanto requisita palco, luzes e cenário. Não precisava. Sua genialidade provada e ratificada o coloca em pedestais mais rochosos e Noites do norte cala qualquer desafeto. Até mesmo as dezenas que foram vítimas da sua raiva instantânea, momento em que ele arqueia as sobrancelhas e transforma as veias do pescoço em caviar para vampiro.

No roteiro das canções, 13 de maio, com andamento afro-baiano, é uma festa percussiva comandada pelo filho Moreno Veloso ao lado das guitarras assanhadas de Davi Moraes, filho de Moraes Moreira, provando que muitas vezes talento também é genético. A faixa-título, um belíssimo texto de Joaquim Nabuco, sobre o qual o compositor se lançou como desafio de musicar, faz justiça à prosa. Michelangelo Antonioni homenageia o cineasta de quem Caetano diz ter assistido a todos os filmes. É uma bela letra em italiano, devidamente aprovada pelo diretor de A noite, com melodia idem enfatizada pelos arranjos de Jacques Morelenbaum, que aqui quase repete em cópia xerox o que já havia feito em Cucurrucucú paloma, de Fina estampa ao vivo. A justificativa é a de que o artista queria uma “orquestra minimalista”. Semelhanças à parte, causa diferença o acréscimo de um delicado vibrafone.

Cobra coral, musicada em cima de um poema de Waly Salomão, ressalta com sensibilidade e humor belezas pouco percebidas. É uma canção entoada em coro – participações especiais de Lulu Santos e Zélia Duncan –, o que lhe dá certo tom épico popular, ajudado pela encorpada percussão, e ao mesmo tempo toques de erudição aplicados pela suavidade dos metais. Noites do norte – o disco –, aliás, é todo de extremo bom gosto nos arranjos, na colocação dos instrumentos pilotados por músicos excelentes e na exatidão com que cordas, metais ou sons percussivos se reúnem numa confraternização de harmonias.

Escravidão – Zumbi, de Jorge Ben, antes de ser Ben Jor, fecha um trio explícito de faixas que têm a escravidão como tema, mas se alia a Zera a reza, que impressiona de cara pelos versos de influência concretista, e a Rock’n’Raul. Esta, pode ser colocada dentro do conceito escravocrata, só que usado de forma metafórica pela maneira com que o compositor fala da devoção brasileira pelo americano. É uma canção de versos cheios de imagens e uma fabulosa melodia. Como tem defendido à exaustão a axé music e seus correlatos, nesta música, que ele afirma ter feito em homenagem a Raul Seixas, o baiano usa o preconceito às avessas para ironizar o rock’n’roll, gênero que serviu de base para o tropicalismo.

De base sim, e não apenas um namoro como hoje ele frisa. A intensidade do movimento estava justamente na mistura do iê-iê-iê americanizado com a bossa nova, não menos americanizada; no cruzamento de Vicente Celestino, Roberto Carlos e Carmen Miranda; na intenção de transformar o som brasileiro em som universal através das guitarras beatlemaníacas – um escândalo para os puristas caretas. E finalmente no encontro bem-humorado da ousadia visual encampada pelos grandes astros pop-rock da época com a eterna irreverência cheia de alegria de viver dos nativos. Portanto, rock’n’roll, rock’n’Raul, rock’n’you Caetano.