*Reportagem publicada originalmente na Revista Istoé 2016 de outubro/novembro de 2014

 

O vento soprava a favor. Após remar durante as eliminatórias em condições adversas, Isaquias Queiroz finalmente tinha a natureza a seu lado. Precisava se preocupar apenas com os adversários. O brasileiro, de 20 anos, seguiu confiante para o Centro Desportivo Krylatskoye, em Moscou, onde disputaria a prova mais importante de sua vida. Dono de uma medalha de ouro em Mundiais de canoagem, tinha a chance de repetir o pódio, mas dessa vez em uma distância (1.000 metros) que integra o programa dos Jogos Olímpicos. O feito o credenciaria ainda mais a conquistar medalha na Olimpíada do Rio, em 2016.

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Isaquias conquistou duas medalhas de ouro no Pan de Toronto

 

Isaquias largou bem. Com remadas ritmadas, começou a se desgarrar do grupo a partir do primeiro terço da disputa. Na metade da prova, já havia aberto um barco de vantagem para seu maior rival, o alemão Sebastian Brendel. Nos metros finais, vislumbrou o topo do pódio. Havia perdido terreno, mas continuava na frente. Tinha o ouro e o recorde mundial em suas mãos. Isaquias deu uma remada mais forte e ergueu o bico da canoa, num movimento de chegada que imita, na água, aquela esticada de cabeça que os velocistas dão nas disputas de corrida. Ainda teve tempo de olhar para a esquerda e se certificar de que o alemão havia mesmo sido superado. Na empolgação, no movimento derradeiro, inclinou o corpo para trás e caiu na água. Na sua cabeça, tinha vencido. Não tinha. Isaquias mergulhou antes da linha de chegada – e perdeu, de forma bisonha, o título mundial.

As remadas pareciam ainda mais fortes na tela do computador de Figueroa Conceição. Na pequena cidade de Ubaitaba, no sul da Bahia, o primeiro treinador do atleta não conseguia acreditar. Lágrimas rolavam por seu rosto. Já haviam enchido seus olhos muito antes do fim da prova. Aquele velho clichê de “passou um filme pela minha cabeça” realmente aconteceu com ele. Figueroa se lembrou do garoto arteiro que fugia das aulas para tomar banho de rio, das primeiras conquistas, da falta de dinheiro e das dificuldades para conseguir transformá-lo em um campeão. “Eu comecei a chorar nos 500 metros, quando ele abriu aquela vantagem”, diz.

“É como assistir a um de seus filhos, fica difícil controlar a emoção.” Figueroa percebeu que Isaquias tinha potencial na primeira vez que o garoto subiu numa canoa, aos 10 anos. Em Ubaitaba (a 379 km de Salvador), o esporte é uma das paixões dos 21 mil habitantes. Não à toa, ela é conhecida como “a cidade das canoas” e já colocou diversos atletas entre os melhores do País. Agora, será sede de seleções cadete e júnior, sob a batuta de Conceição.

As primeiras remadas de Isaquias foram dadas nas águas do rio das Contas, que corta o município. O menino chegou à modalidade por meio do programa Segundo Tempo, do Ministério do Esporte. No início, era apenas um hobby, brincadeira de criança. “Eu gostava de ficar no rio, tomando banho”, diz o atleta, que era seguidamente suspenso dos treinos por causa de suas fugas. “O rio ali tem 3,5 quilômetros. A gente ia até o fim e ficava tomando banho. Se o técnico flagrava, era suspensão.” A mãe de Isaquias via na canoagem uma chance de garantir que o filho seria cuidado por alguém enquanto ela estivesse trabalhando. Servente da rodoviária local, ralou a vida toda para sustentar os seis filhos sozinha – o marido morreu em 1999, vítima de um derrame. Mas Dilma, 53 anos, também temia pela saúde do garoto. Bio, como é conhecido em Ubaitaba, tem outro apelido: Sem-Rim. Em 2004, um ano antes de começar a remar, caiu em cima de uma pedra e sofreu lesões internas. Levado às pressas ao hospital, perdeu um rim. “Eu estava com medo, às vezes ele sentia muita dor”, diz a mãe. “Mas me disseram que não tinha problema, então deixei que ele fosse remar.”

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Em Ubaitaba, sua cidade natal no interior da Bahia, Isaquias é um herói

 

Esse foi só um dos sustos que Dilma passou com o filho na infância. Ainda pequeno, Isaquias mexeu no fogão e deixou cair sobre seu corpo uma panela de água fervendo. Aos 5 anos, diz Dilma, o garoto foi raptado e encontrado horas depois. Não por acaso, ela ficou uma pilha de nervos quando uns moleques apareceram buzinando em sua casa numa tarde de setembro de 2013, perguntando pelo seu filho. “Na hora pensei que ele tinha morrido, mas aí eles começaram a dar risada e me contaram que tinha sido campeão”, lembra. “Até hoje tiram sarro de mim por causa disso.” No Mundial da Alemanha, em 2013, o brasileiro conquistou o inédito ouro no C-1 500 e o bronze no C-1 1000, que está no programa olímpico (o “c” é de canoa, o primeiro número indica quantos atletas vão na embarcação e o segundo, a distância percorrida em metros). Antes, havia sido campeão Mundial júnior, em 2011, curiosamente o ano mais conturbado de sua carreira.

Isaquias deixou Ubaitaba e foi viver no Rio de Janeiro. Acostumado a uma vida livre e cercado de amigos, teve dificuldade para se adaptar à rotina cansativa de treinamento, ao tédio e à solidão. Muitas vezes, ligava para a mãe e dizia que queria voltar. Reclamava também da falta de dinheiro para se manter e para bancar viagens e competições. Quando soube que ficaria fora do Pan de Guadalajara, em 2011, o garoto explodiu. Foi para Ubaitaba sem permissão e acabou suspenso. “Aí fiquei com mais raiva ainda. Saí da seleção e só voltei no ano seguinte, quando o Sebastián Cuattrin (ouro no Pan do Rio-2007) me chamou para treinar em São Paulo”, diz. “Eu era jovem, queria me divertir, e o mais difícil nessa vida de atleta é o confinamento.” O remador também demonstrou irritação após o Mundial de 2013. Medalha de ouro no peito, reclamou da falta de reconhecimento por parte da Confederação Brasileira de Canoagem. A rusga foi superada.

Agora, Isaquias consegue ajudar a mãe com o que ganha como atleta. Ele é beneficiário da Bolsa Pódio, do governo federal, com R$ 15 mil por mês neste ano. Também tem apoio via confederação, que recebe verba da Lei Piva (R$ 2,9 milhões em 2014) e patrocínio do BNDES. O banco investiu, em 2013, R$ 3,7 milhões para manter o centro de treinamento de canoagem slalom em Foz do Iguaçu, enquanto a implantação do CT em São Paulo recebeu R$ 2,5 milhões. Isaquias treinava na raia olímpica da USP, na capital paulista, mas está de mudança para Lagoa Santa, em Belo Horizonte (MG), nova base da seleção. Se marasmo e confinamento eram um problema em uma cidade grande, ele terá bem mais dificuldade no pequeno município de cerca de 53 mil habitantes. Inferno para o atleta, paraíso para o treinador. Jesús Morlán, contratado pelo Comitê Olímpico Brasileiro, não vê a hora de ter sua lagoa particular para comandar os treinos. O espanhol chegou ao Brasil em abril de 2013 com uma missão ousada: alcançar o pódio nos Jogos do Rio, em 2016, nas três provas sob sua batuta (C-1 200, C-1 1000, C-2 1000).

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Isaquias conta com um treinador colombiano para aprimorar sua técnica

 

Jesús precisou mexer na estrutura que encontrou em São Paulo. Pediu a compra de novos materiais de ponta para o COB e para a confederação. Mas a principal revolução aconteceu na forma de treinar os atletas. Ele os ensinou a pensar a prova por etapas e estabelecer metas de tempo para cada uma delas. Ensinou a turma a controlar o ritmo e a frequência das remadas e a poupar energia. “O primeiro treinamento foi muito ruim, eles tiveram muita dificuldade”, diz. Depois de uma semana, parecia que os atletas já tinham nascido sobre a canoa. “Só aceitei vir para o Brasil porque sabia que teria material humano de qualidade. Minha meta é ganhar medalhas em 2016.”

Jesús se define como “o tipo mais sem graça que existe” porque adora rotina. Sua programação semanal – e a dos atletas – inclui treinos em um ou dois períodos alternados ao longo da semana. Horário certo para almoço, jantar, treinamento e soneca da tarde. No domingo, é folga. Mas ele geralmente passa boa parte do tempo no computador. Pode ser definido também como maluco por trabalho. “Por isso não gosto de São Paulo, você perde muito tempo para fazer qualquer coisa”, diz. “Agora sou a pessoa mais feliz do mundo porque vou para uma cidade pequena, com lagoa privativa, não haverá mais greves, feriados, terei uma lagoa para treinar todos os dias.” Jesús é exigente com treinos e disciplina. E não gosta de atletas que reclamam ou pedem demais. Neste ano, concedeu alguns privilégios a Isaquias, como viajar nos fins de semana para visitar a mãe ou a namorada, no Rio. Nos próximos anos, porém, com a Olimpíada batendo à porta, deve encurtar a rédea.

“Medalhas são conquistadas com ausências”, diz o treinador, que deixou a mulher e a filha de 3 anos vivendo na Colômbia. Encontram-se raramente, em datas especiais. Isso não significa que ele queira ver seus atletas infelizes. “Desejo que tenham namoradas, família, uma vida afetiva plena”, afirma. “Se você tem um atleta infeliz, dificilmente ele vai render bem.” Mas a renúncia do treinador acaba servindo de exemplo para os esportistas, que estão prestes a encarar os anos mais desafiadores de suas vidas. Principalmente Isaquias. Além de se acostumar a ausências, ele tem enfrentado uma nova fase na carreira, com pedidos de entrevistas, fotos e compromissos fora da água. O garoto de Ubaitaba ainda não sabe lidar com as novas demandas e pouco se anima com elas. Às vezes, até se irrita. Para realizar as imagens desta reportagem, precisou de horas de convencimento ao telefone e, depois, pessoalmente. Mas basta sentar por alguns minutos e começar a falar da vida que um bem-humorado contador de histórias também aparece. “Às vezes, parece que falta ar”, confessa. “Mas aí você vai para o Mundial, ganha uma medalha e vê a recompensa.” Isaquias afirma que, se não tivesse escolhido a canoagem, ninguém saberia quem ele é. “Consegui ser uma pessoa na sociedade graças ao esporte”, diz.

Subir ao topo do pódio no C-1 1000, derrotar o alemão campeão olímpico e se credenciar como favorito ao ouro na Rio-2016. Era essa a recompensa que Isaquias buscava com tanta vontade naquela final do Mundial de Moscou, em agosto. Caiu na água comemorando, ergueu os braços, gritou. Sebastian Brendel, ao cruzar a linha, despencou e se agarrou à canoa, exausto. Na lancha que os levaria à terra firme, cumprimentou o brasileiro pela conquista. Quando Isaquias chegou ao píer, eufórico, deu de cara com um oficial de prova que carregava o resultado final. Seu nome não estava lá. Logo chegou a notícia: a queda da canoa havia acontecido antes da linha final, e o brasileiro estava desclassificado. “Meu mundo desabou, a única coisa que eu tinha para fazer era chorar”, afirma. “Fiquei completamente fora de mim.” A primeira pessoa a receber o telefonema de Isaquias foi a namorada, Larissa, no Rio. Eles se conheceram em Ubaitaba, estão juntos há poucos meses, mas já carregam um anel de compromisso. Não foi bem uma conversa, já que ele não conseguia parar de chorar. Depois, tocou o telefone de Figueroa Conceição. Na Bahia, o treinador enxugou as lágrimas e disfarçou a voz embargada. Só algum tempo depois confessou que estava chorando.

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O canoista se transformou em uma das grandes esperanças de medalha nas Olímpiadas do Rio em 2016

 

“Disse a ele que não importava o que tinha acontecido, ele havia mostrado que é o melhor do mundo”, afirma o primeiro treinador. “O alemão sabe que o Isaquias ganhou aquela prova.” O choro continuou no hotel, à tarde toda e à noite. Novas ligações para Larissa o ajudaram a relaxar, mas o fantasma daquela queda ainda o atormentava. Durante a prova, Jesús viu seu pupilo colocar na água, no maior teste de sua vida, tudo que haviam treinado. Ao contrário de outros treinadores, ele percebeu que Isaquias havia caído antes de cruzar a linha de chegada. Quem o procurava para apertar sua mão e celebrar a vitória ouvia sempre a mesma frase: “Ele não ganhou”. Jesús falou pouco com Isaquias após a queda. Mas ficou atento. Queria ver como o pupilo responderia no dia seguinte, quando iria defender seu título no C-1 500. “Foi muito cruel”, diz. “Ele não precisava ter feito aquele movimento no final, e aprendeu uma lição muito dura.”
Em Ubaitaba, Figueroa Conceição não tinha dúvida do que iria acontecer no dia seguinte. Desde pequeno, diz ele, Isaquias rema melhor se está com raiva. Quando o atleta voltou ao Centro Desportivo Krylatskoye, os olhos ainda estavam irritados de tanto chorar, mas sua confiança havia voltado. O ouro no C-1 1000 não era dele, mas pela primeira vez o brasileiro tinha sentido que podia derrotar o alemão campeão olímpico. O desempenho na final do C-1 500 foi impressionante. Isaquias saiu atrás, mas logo tomou a dianteira. Após 200 m, a vantagem era tanta que, ele diz, já contava com o bicampeonato. Depois, ainda ganhou o bronze no C-2 200 ao lado do amigo Erlon Souza. “Mostrei que sou jovem, mas sei me virar”, diz. “Sou brincalhão, mas, na hora de ser homem, sei o que fazer, sei mostrar o rendimento de um atleta de alto nível.”

De volta ao Brasil, o canoísta correu para a Bahia. Aceitou desfilar em carro aberto por Ubaitaba somente após muita insistência dos amigos. Queria mesmo era entrar debaixo da asa da mãe, comer o feijão bem temperado de Dilma, descansar e voltar um pouco a ser apenas aquele garoto arteiro. Por pouco tempo. No Mundial da Rússia, Isaquias aprendeu que existe só um sentimento que compensa a saudade e as dores da vida de atleta: o de chegar na frente. Um erro lhe tirou esse gosto neste ano. E ele garante: não vai deixar que isso aconteça de novo em 2016.