Já exatamente dois anos, com a prisão em flagrante do então chefe dos fiscais da Administração Regional de Pinheiros, Marco Antônio Zeppini, extorquindo uma comerciante, começou a vir à tona a lama que corre nos subterrâneos da administração municipal de São Paulo. O Ministério Público e a Polícia Civil criaram uma força-tarefa para investigar e punir os responsáveis por uma milionária rede de corrupção. Dois vereadores e um deputado estadual perderam o mandato. O ex-vereador Vicente Viscome (PPB) está na cadeia desde março do ano passado e o ex-deputado Hanna Garib foi preso em 28 de novembro. Outros dois vereadores foram submetidos à Comissão Processante, mas se livraram graças à maioria governista na Câmara Municipal. Não há, no entanto, nenhum indicativo de que essa máfia tenha sucumbido. Na semana passada, o promotor José Carlos Blat precisou alterar sua agenda para socorrer José Ricardo Teixeira da Silva – conhecido como Alemão –, Hamurabi Pereira de Oliveira e Daniel Ferreira de Farias. No ano passado, eles prestaram depoimentos preciosos no processo contra Hanna Garib e estão ameaçados de morte. Na tarde da terça-feira 5, Blat acompanhou os três ao Programa Estadual de Proteção a Testemunhas e Vítimas (Provita).

No domingo 3, Alemão, Hamurabi e Daniel relataram as ameaças ao delegado Sebastião dos Santos, do 12º Distrito Policial. Segundo o Boletim de Ocorrência, às 20 horas do domingo, a adolescente Thais, filha de Alemão, atendeu o telefone em sua casa. Uma voz de homem perguntou: “Onde está o safado do Alemão? Se eu não conseguir pegar ele, pego você.” Em seguida, o próprio Alemão recebeu um outro telefonema suspeito. Uma voz masculina perguntava por Hamurabi. “Vou matá-lo assim que o encontrar”, ameaçou. A mãe de Daniel também recebeu uma ligação ameaçadora: “Pode encomendar o caixão do Daniel porque até o Natal terá novidades”, disse uma voz masculina. “Há mais de ano, essas pessoas vêm sofrendo ameaças, mas nos últimos dias elas chegaram a seus familiares”, afirma Blat. “Temos o dever de lhes dar proteção.”

Assassinatos – O promotor tem razão de estar preocupado. Em 20 de fevereiro do ano passado, o presidente do Sindicato dos Camelôs Independentes de São Paulo, Afonso José da Silva, acusou Hanna Garib de ser um dos destinatários finais das propinas pagas pelos ambulantes do centro aos fiscais da Administração Regional da Sé. Após o seu depoimento, Afonso começou a receber ameaças, que se confirmaram três dias depois. “Tive sorte. Não morri por pouco”, afirma o camelô. Afonso estava em seu apartamento, quando foi surpreendido por três homens batendo na porta. Ao abri-la, o ambulante levou quatro tiros. A polícia prendeu dois dos atiradores, que apontaram como mandante do crime um sujeito conhecido como Piauí, até hoje foragido. O inquérito que investigou o atentado concluiu que Afonso fora o alvo de uma disputa de poder no sindicato dos ambulantes.

Menos sorte teve o diretor do Sindicato dos Trabalhadores na Economia Informal de São Paulo, Reinaldo Ferreira de Santana. Em 22 de abril do ano passado, ele depôs para a força-tarefa. Deu os nomes dos fiscais que extorquiam os camelôs tanto na Administração Regional da Sé como na Administração Regional da Lapa e afirmou que o dinheiro era remetido a Hanna Garib. No dia 17 de novembro de 1999, Reinaldo estava entrando em sua casa, quando recebeu um tiro na testa e morreu na hora. O inquérito concluiu que o homicídio nada teve a ver com as denúncias contra a máfia dos fiscais e que Reinaldo fora vítima de uma briga entre camelôs.

Em 12 de fevereiro do ano passado, o presidente da Associação dos Distribuidores de Coco Verde em São Paulo, Gilberto Monteiro da Silva, foi preso. Envolvido com a máfia dos fiscais, ele fora apontado por outros camelôs como o responsável pela arrecadação de propinas para permitir a instalação de barracas no viaduto Santa Ifigênia, na região central de São Paulo. Para ter sua eventual pena reduzida, Gilberto passou a colaborar com as investigações e denunciou Hanna Garib. Em 11 de janeiro, Gilberto foi à 1ª Delegacia Seccional de São Paulo e desmentiu parte de seus depoimentos anteriores, retirando principalmente as acusações feitas contra Garib. “Algo estranho aconteceu. Por que ele não fez o desmentido à força-tarefa?”, pergunta Blat. Essa resposta será difícil de encontrar. Em 16 de março, Gilberto foi assassinado com sete tiros na porta da Associação dos Distribuidores de Coco. O inquérito que apurou o homicídio concluiu que Gilberto morreu por causa de uma briga pelo monopólio na distribuição de coco verde na cidade. “Somos pobres e só nos resta acreditar na polícia. Sempre disse para meu irmão não se envolver com essa gente grande que a conta nunca vai para eles”, disse Zacarias da Silva, irmão de Gilberto. A família do camelô se mudou para o Nordeste. Entre os ambulantes há disputas intensas, principalmente em relação aos melhores pontos de venda e quanto ao preço colocado nas mercadorias. Não se tem notícia, no entanto, de que essas brigas terminem em morte, a não ser nesses casos em que os personagens estiveram diretamente envolvidos com a investigação sobre a máfia instalada no poder municipal paulistano.

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Outra testemunha contra a máfia dos fiscais que também acabou assassinada foi Anísio Carmo dos Santos, ex-assessor da vereadora Maria Helena (PL). Em 21 de dezembro de 1999, Anísio acusou a vereadora de ficar com parte dos salários dos funcionários de seu gabinete, dizendo que ela e Hanna Garib fariam parte do esquema de corrupção instalado em toda a cidade. Seu depoimento, segundo a força-tarefa, foi determinante para levar a vereadora para a cadeia. Maria Helena chegou a ser presa mas não perdeu o mandato. Em fevereiro, Anísio voltou ao Ministério Público. Relatou que estava sofrendo ameaças e que sua vida só seria poupada caso desmentisse as acusações contra Garib. “Minha casa chegou a ser arrombada duas vezes”, contou o ex-assessor parlamentar aos promotores. “Depois disso não tivemos notícias dele”, lembra Blat. Em 1º de outubro, Anísio foi assassinado com dois tiros em um bar na Vila Nova Cachoeirinha, zona norte de São Paulo. Morreu fazendo campanha eleitoral, vestindo a camiseta de Ricardo Garib, filho do deputado cassado.

Os promotores e delegados da força-tarefa constataram que as coincidências não estão apenas no fato de as testemunhas serem assassinadas. Eles perceberam que a defesa do ex-deputado Hanna Garib, que procura no Superior Tribunal de Justiça recuperar o mandato do parlamentar, tem usado no processo desmentidos de testemunhas feitos em delegacias. Diante disso, os promotores decidiram investigar o que estava ocorrendo com essas testemunhas. O resultado dessa investigação é comprometedor.

Desmentidos – Daniel, Alemão e Hamurabi disseram ter sofrido ameaças de morte, caso não se retratassem das acusações contra Garib. Os três chegaram até a fazer o desmentido no 8º Distrito Policial, mas se arrependeram. “O Gilberto desmentiu e mesmo assim acabou morrendo”, lamenta Daniel. “Não adiantou nada fazer o que mandaram, pois continuamos ameaçados”, conta Hamurabi. Com medo, eles procuraram a força-tarefa e contaram o que aconteceu. Assessores de Garib os procuraram, os levaram para o escritório do ex-deputado e lhes prometeram “uma vida sossegada”, caso as denúncias fossem retiradas. Enquanto negociavam, os assessores do ex-deputado chegaram a pagar pequenas despesas dos camelôs, como gasolina e mesadas de R$ 100. Para Hamurabi, ofereceram R$ 80 mil, que até hoje não pagaram. O promotor Blat já encaminhou esses depoimentos para o Superior Tribunal de Justiça, com o intuito de que os desmentidos não sejam considerados na defesa de Garib. Agora, além de dar a proteção necessária às testemunhas, a força-tarefa está empenhada em encontrar Piauí, acusado de ser o mandante da tentativa de homicídio contra Afonso José da Silva. O empenho é bastante justificado. Os promotores e delegados já sabem que nas negociações feitas no escritório de Garib para a formulação dos desmentidos estava presente um cunhado de Piauí, que falava em nome do ex-deputado. “Precisamos investigar tudo isso com muita profundidade e discrição, pois essas mortes e atentados podem não ser apenas coincidências”, conclui Blat. 

Mortos
Foto: Murilo Clareto/AE Foto: Murilo Clareto/AE Foto: Murilo Clareto/AE

Reinaldo (à esq.), Anísio e Gilberto faziam parte do esquema de propinas. Denunciaram seus chefes ao Ministério Público, foram ameaçados e assassinados. Para a polícia, tudo não passou de uma briga entre camelôs

 


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