Para ser reconhecida como beata e depois se tornar santa, processo aberto neste ano, ­Zilda Arns precisa de pelo menos dois milagres reconhecidos pelo Vaticano. Não se pode dizer, porém, que a pediatra paranaense, responsável pelo projeto mais eficaz contra a mortalidade infantil no Brasil, a Pastoral da Criança, contou alguma vez com milagres. Pelo contrário, a médica católica desafiou a Igreja para conseguir por em prática projetos sociais que até a chegada do Papa Francisco eram vistos com muitas reservas pela Santa Sé. Fez quase tudo que fez com as próprias mãos. No documentário e na biografia que o jornalista Ernesto Rodrigues pretende lançar este ano, fica claro que foram necessários muitos pés da porta, das dioceses ao Vaticano, dos gabinetes ministeriais aos distribuidores de cesta básica, para que Zilda Arns erguesse o projeto que transformou a vida de milhares de brasileiros e a maneira de se tratar a infância pobre no Brasil.

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Zilda Arns ganhou notoriedade quando, depois de um surto de poliomielite no País, assumiu a Secretaria de Saúde do Paraná – onde havia um dos principais focos – erradicando a doença antes dos outros estados. “Mas não foi sobre a obra de Zilda Arns que quis me debruçar, apesar de ter contado com apoio da Pastoral”, diz o autor do livro e diretor do documentário. “O que quis mostrar são os conflitos da mulher e da mãe, da pessoa por trás do mito que abria a porta de qualquer presidente da República.” Ela passou por seis. Um deles, Fernando Henrique Cardoso, entrevistado para o filme, contou que chegou a interromper uma reunião do Copom para atender a líder da Pastoral da Criança.

Descendente de imigrantes alemães religiosos, estabelecidos no interior do Paraná, Zilda teve de contrariar o pai para estudar medicina. Não era profissão para uma mulher. Formada, mãe de quatro filhos e grávida de três meses, viajou para Colômbia, em 1973, para uma especialização em medicina sanitária. Lá, um professor, médico, avaliou que sua gravidez a colocava em risco e que deveria realizar um aborto. Ela não fez, era radicalmente contra. Foi por isso considerada inimiga de correntes progressistas. “De fato ela era contra o aborto e toda a ação em prol da legalização. Isso lhe valeu a pecha, entre as feministas, de representar a Igreja e não as mulheres”, conta Rodrigues, que vai lançar a biografia pela editora Vozes e inscreveu o documentário no Festival de Cinema do Rio de Janeiro, que ocorre em outubro na capital carioca.

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OPOSITORES
O método de pesagem e o preparo do soro fisiológico foram questionados
por pediatras. As ações, em conjunto, reduziram de 100
para 15 mortos a cada cem mil crianças nascidas

Entre as entrevistas colhidas para o filme, a de Dom Paulo Evaristo Arns, irmão, mostra como a Pastoral da Criança, hoje um modelo mundial de atenção social, desagradava a quase todos os setores da sociedade, inclusive da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB. “Havia muita resistência contra nossa família”, contou o arcebispo-emérito de São Paulo.

Se as feministas detestavam a médica por sua postura cristã em relação à gestação, a Igreja desaprova, ainda sob o de João Paulo II, as ações educativas do projeto. Zilda, certa vez, deixou o Vaticano vociferando que bateria as sandálias “para não levar nem o pó deste lugar”. Era um encontro com o cardeal colombiano Alfonso Lopes Trujillo, para convencê-lo da importância do reconhecimento do trabalho da brasileira Pastoral da Criança. “O cardeal a acusou de ser a favor da legalização do aborto, pois não havia diferença entre a contracepção e interrupção da gravidez”, contou ao jornalista Elson Faxina, ex-assessor de Zilda Arns, que participou da reunião. “Algumas vezes, ela era uma mulher muito dura”, disse Faxina.

Não bastasse as oposições no âmbito político, muitos pediatras se incomodaram com os procedimentos implantados pela colega na sua campanha contra a desidratação e a desnutrição, o soro fisiológico e a multimistura.“Era difícil convencer que água com açúcar e sal era remédio”, lembra Nelson Arns Neumann, hoje à frente da organização criada pela mãe.

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Por fim, Zilda também carregou grandes conflitos internos. Silvia, filha da gravidez que ela se recusou a interromper em Mendelín, cresceu e passou a se relacionar com um homem casado, com quem teve um filho. A médica acolheu apesar de reprovar a situação. Achava que em um momento importante do crescimento de Silvia, estava por demais envolvida com o trabalho. Outra culpa acompanhou-a por toda a vida: a morte do marido, Aloysio Neumann. Ele teria ido à praia de Betaras, no Paraná, com as crianças, em um final de semana em que ela precisou trabalhar. Enfartou em alto mar, tentando salvar um dos filhos dos dois.

Felippe Arns, irmão mais velho, conta que ela estava sofrendo por interromper as férias com a família em 2010, na mesma praia, para ir ao Haiti, onde pretendia levar o modelo da Pastoral da Criança. Como em todos os outros momentos de dúvida, decidiu ir em frente. Era janeiro. Zilda estava em um anexo da Igreja Sacre Coeur, em Porto Príncipe, quando o terremoto atingiu o Haiti, arrasando a capital haitiana e encerrando uma das trajetórias mais extraordinárias que o Brasil conheceu. Zilda Arns Neumann morreu como uma santa. Mas viveu como uma guerreira.

Fotos: Tuca Vieira/Folhapress, Cléber Júnior/Extra; Eduardo Knapp/Folhapress; Ana Branco/Ag. O Globo