Talvez sofisticados gourmets desconheçam que a primeira moqueca de peixe da qual se tem notícia era preparada pelos índios com carne de gente. Em carta sobre os costumes brasileiros escrita em 1554, o padre português Luís de Grã explica que, “quando se dispunham a comer carne humana, os índios assavam-na na labareda”. Mais tarde, a grelha de varas (o moquém) foi substituída pela panela e a carne, pelo peixe. Já o bobó de camarão era um prato de prestígio no Rio de Janeiro desde a Independência do Brasil e, assim como várias outras receitas baianas, tinha motivações religiosas. A combinação do crustáceo com inhame, gengibre, amendoim e castanha de caju funcionava como um “mosaico ritualístico para aproximar o homem das entidades sobrenaturais”.

Histórias curiosas sobre a origem dos mais populares pratos nacionais e suas combinações foram reunidas no livro Cozinha brasileira com recheio de história (Editora Revan, R$ 15), do historiador Ivan Alves Filho e do cozinheiro profissional Roberto Di Giovanni. Os autores falam da fartura e da variedade em 20 receitas tupiniquins – como o pato no tucupi, a galinha com quiabo, o mocotó –, temperam o texto com documentos e poesias recuperadas do fundo do baú e, ao final de cada capítulo, pontuam o modo de fazer com toques estilísticos e muito humor. Ao contabilizar as providências recomendáveis no preparo de cada iguaria, dão conselhos irresistíveis. Para fazer um legítimo tutu à mineira, por exemplo, “é recomendável tomar uma boa pinga antes da refeição, um cálice só, numa só talagada. Ê trem bom!”

Segundo os autores, a origem de muitos pratos conhecidos está na cultura indígena. “O desprezo histórico chegou a ponto de apagar a contribuição desses povos”, constata Ivan. O feijão-preto era plantado pelos índios e esteve presente na mesa do País desde os tempos da colonização. A feijoada completa, de acordo com os autores, teria sido criada pelas camadas populares de forma instintiva, “à maneira de um quadro naïf”. De início, acrescentou-se ao feijão o arroz, o toucinho e a carne-seca. A tradição portuguesa “dos fornos dos mosteiros, célebres pelos seus presuntos de fumeiro e paios de lombo”, teria dado a sua contribuição para o atual aspecto dessa estrela da culinária brasileira.

O deslocamento para conquistar os confins do País também teve influência sobre a culinária nacional. A vida errante dos índios, dos bandeirantes, dos tropeiros e garimpeiros fez surgir “pratos nômades por excelência, preparados em meio aos solavancos das carroças e das tropas, entre outros muares”. Incluem-se aí o arroz-de-carreteiro e o feijão-de-tropeiro.

Arroz-de-carreteiro
Quadro Expedição, de G.L. Langsdorff, retrata o tropeiro

(…) Para quatro carreteiros com pouca fome (se é isso possível), meio quilo de charque e meio de arroz são suficientes. Uma cebola picada, um dente de alho e água já fervendo que dê para cobrir o arroz e duas colheres de sopa de óleo. Já na véspera, o carreteiro (…) lavava a carne em várias águas para retirar o excesso de sal. Depois, escorria, retirava as pelancas (…) e cortava em pedaços. Na panela cascorrenta, esquentava o óleo e dourava a cebola e o alho picados. Juntava o charque (…), depois refogava com arroz. (…)
Por fim, juntava a água já fervendo, até dois dedos acima do arroz. Corrigia o sal, tampava a panela e mantinha em fogo baixinho. A noite estrelada, a brisa do minuano, o mate e o silêncio eram o acompanhamento.