Genialidade não é apenas uma característica de quem tece com talento suas obras. É também a capacidade de antever fatos que se repetem com a história. Noel Rosa (1910-1937), genial na sua dor, no seu romantismo e principalmente no seu humor, é um destes que anteviram os leilões milionários dos jogadores de futebol no samba de 1930 Quem dá mais?, que tem o subtítulo de Leilão do Brasil. Nele, o compositor e cantor carioca, símbolo do famoso bairro de Vila Isabel, zona norte do Rio de Janeiro, faz uma divertida ironia em versos sobre um carro esporte caríssimo ganho por Russinho, à época eleito pelo Vasco da Gama como o jogador mais popular do Brasil. Se fosse escrita hoje, bastaria mudar o nome do atleta. A curiosidade está numa nota de rodapé do encarte de 160 páginas que acompanha a imprescindível caixa Noel pela primeira vez (preço médio R$ 225), trazendo a obra completa de Noel Rosa. São 229 canções em suas versões originais, algumas delas por intérpretes mais contemporâneos como Ná Ozzetti e Vânia Bastos, que garimparam músicas inéditas do compositor e as integraram aos seus repertórios.

A coleção de sete CDs duplos é resultado de uma pesquisa de 13 anos do professor paulistano de biologia Omar Jubran, 47 anos, um fã confesso do chamado Poeta da Vila. “O fanatismo começou pelo rádio e pela música popular brasileira”, diz Jubran. “Sempre comprei vários gêneros de música, mas, quando descobri os discos das gerações anteriores à minha, encontrei em Noel Rosa um compositor multifacetado.” A expressão é perfeita. Basta ouvir duas obras-primas como Três apitos ou Último desejo e em seguida João Ninguém – de letra autobiográfica, segundo Jubran – para constatar como Noel transitava com facilidade por temas e melodias tão diversos, ora falando de amor, ora fazendo divertidas crônicas de seu tempo.

Nem mesmo os parcos atributos físicos lhe tiravam o bom humor. Ao contrário, fazia caricaturas de si próprio, brincando com a falta de queixo advinda do parto feito a fórceps, o que provocou fratura e afundamento do maxilar e uma ligeira paralisia da face direita. Boêmio por excelência, Noel viveu apenas 26 anos, mas deixou 259 composições – 30 não estão no disco porque as melodias foram perdidas. Todas as músicas são apresentadas em ordem cronológica de gravação. Por orientação de Jubran, o processo de remasterização obedeceu à sonoridade da época. Assim, é possível ouvir direitinho, apenas sem os chiados dos velhos 78 rotações, os arranjos e os divertidos “erres” acentuados de cantores como Francisco Alves e Orlando Silva. Para quem não é afiado no assunto Noel Rosa, a caixa proporciona uma outra curiosidade: Linda pequena e Pastorinhas são a mesma canção. Sob o título de Linda pequena, a composição em parceria com João de Barro, o Braguinha, não causou o menor impacto. Depois da morte de Noel, seu parceiro modificou apenas dois versos, batizou-a de Pastorinhas e a transformou num grande sucesso carnavalesco, hoje um clássico.