"É meu dever cristão.” A frase é do prefeito reeleito de Salvador, Antônio Imbassahy (PFL), sobre o que considera uma missão no seu próximo mandato: acabar com as desigualdades sociais na cidade. Qualquer cristão bem sabe que isso é impossível numa capital de 2,5 milhões de habitantes, na qual o abismo entre ricos e pobres é cavado desde os tempos coloniais. No entanto, só o compromisso com a tarefa mais do que árdua já é um grande passo. Imbassahy está afinado com as idéias dos que estudam as cidades e seus problemas. Em 2001, segundo alguns destes estudiosos, o grande desafio das administrações municipais será a redistribuição de renda, através de pacotes de programas sociais que em sua maioria são paliativos, mas minimizam os efeitos da política econômica do governo federal. Os novos prefeitos e os reeleitos vão penar para realizar o que os Estados e a União já não fazem direito há muito tempo. Reféns da Lei de Responsabilidade Fiscal, muitos dos 5.656 administradores das cidades brasileiras se verão à míngua, com os orçamentos limitados e, por causa disso, inviabilizados em algumas ações. As cidades mais ricas e importantes terão um encargo extra: a proximidade com a disputa presidencial de 2002 exige cuidado com os telhados de vidros e as pedras dos vizinhos.

A inversão de papéis entre municípios, Estados e União deve tornar a missão de investir no social mais difícil ainda. Voltado para a estabilidade econômica, o governo Fernando Henrique vem tentando reduzir o peso das ações sociais no orçamento, repassando-o às administrações locais ou, simplesmente, ignorando suas obrigações. E assim agem também os Estados. O prefeito eleito do Rio de Janeiro, César Maia (PTB), disse que ao se sentar novamente na cadeira vai tratar de cuidar da segurança. Deve começar espalhando guardas metropolitanos pela cidade, no projeto Crime Zero. Em Salvador, Imbassahy também diz que o combate à violência é uma de suas prioridades: “O poder local tem condições de colaborar na questão.” Alguma coisa está errada nesta equação. “O município não poderia gastar naquilo que não é de sua competência, como segurança pública. Mas qualquer prefeito por aí vai dizer que é ele quem dá carro e munição para a polícia, porque os Estados não cumprem a sua parte”, reclama o presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e prefeito de Mariana Pimentel (RS), Paulo Ziulkoski (PMDB). No Brasil, monitorar os índices e inibir a violência é tarefa dos Estados. Mesmo assim, este ano, nas campanhas municipais pelo País, propostas para a melhoria da segurança pública foram carros-chefes, enquanto os temas que, de fato, são responsabilidades das prefeituras, como o saneamento básico, passaram para o segundo plano.

Distribuição de renda – “O cidadão se preocupa com a violência mais do que deveria porque ela é amplificada pela mídia. Mas não vê que ela está intimamente ligada aos maiores problemas das cidades: desemprego, educação, saúde e moradia”, analisa a urbanista e professora da Unicamp, Raquel Rolnik. Para ela, só a redistribuição de renda pode ajudar na melhoria das condições de vida da população e, consequentemente, na diminuição da violência: “A política municipal pode ser redistributiva. Através de projetos sociais como o Renda Mínima e o Bolsa-escola, que efetivamente distribuem renda, até a política habitacional, que proporciona moradia em áreas que concentram infra-estrutura e emprego.” Ou seja: se FHC não faz o que deveria para diminuir a pobreza, que os prefeitos ponham a mão na massa, nem que seja para cumprir seu “dever cristão”.

O professor Milton Santos, um dos mais respeitados geógrafos do mundo, acredita que o combate à desigualdade é o principal desafio dos administradores que assumem, ou continuam em seus cargos, em janeiro de 2001: “Os prefeitos precisam mudar o pensamento sobre a cidade e enxergar a pobreza como questão central, e não residual. E se a União não cumpre com suas obrigações mais básicas e estas ficam a cargo dos poderes locais, é preciso ir fundo na questão.” Em Curitiba, o prefeito reeleito Cássio Taniguchi (PFL) engrossa o coro do geógrafo: “Os maiores desafios estão nos bolsões de pobreza. É urgente reduzir as diferenças entre os que têm mais e os que têm menos”, afirma. Taniguchi, em seu segundo mandato, diz que vai concentrar esforços no que chama de resgate social da cidade, “levando a infra-estrutura para onde estão os mais carentes e trazendo estas pessoas ao convívio da cidade.”

Emprego e moradia – O processo que os urbanistas chamam de “periferização da cidade” preocupa o prefeito de Curitiba. A cidade do século XXI caminha para a intensificação desta operação, que leva, cada vez mais, a miséria para a periferia e cria centros urbanizados no perímetro consolidado do município. Pelo menos, enquanto a infra-estrutura estiver concentrada em determinadas áreas e a moradia barata em outras. Uma das soluções, a longo prazo, está no repovoamento dos centros e na descentralização dos empregos, lazer e saúde. “Não adianta abrir mais avenidas”, diz Raquel Rolnik. “Para casos de difícil solução, como São Paulo, a periferização também é uma das principais causas dos congestionamentos. Nascem bairros distantes e extensos que servem apenas como dormitório e exigem o deslocamento de milhares de pessoas”, observa.

E se o planejamento da localização das moradias é um problema sério, mais grave ainda é o déficit habitacional brasileiro, que chega a 5,5 milhões de famílias – sem habitação ou vivendo precariamente. O novo prefeito do Recife, João Paulo (PT), diz que cuidar dos que não têm teto para morar será uma de suas prioridades: “Nós temos um déficit de 80 mil moradias, fora outras 80 mil famílias que vivem em condições subumanas”, afirma. Outra questão, ligada à moradia, é o desemprego. Se o cidadão costuma culpar o governo federal pela falta de oportunidades, são as prefeituras que podem minimizar o problema. Para Milton Santos, a principal falha das administrações municipais ao tratar da questão é pensar na economia urbana como se fosse nacional, calcada na economia global: “Hoje o emprego é visto a partir da macroeconomia, a única que os economistas conhecem. Mas há outras coisas a fazer. O homem do cotidiano vê necessidades que escapam à visão dos economistas.” Em Santos (SP), que junto com outras cidades da Baixada Santista é dona dos maiores índices de desemprego do Estado – cerca de 18% –, a solução encontrada pelo prefeito reeleito Beto Mansur (PPB) é a criação de empregos temporários, através do incentivo à construção civil. “Aprovamos uma lei que permite a construção de edifícios com mais de dez andares em Santos, até então proibidos. Só este ano já acertamos mais de 20 empreendimentos de grande gabarito, com começo de obras previsto para 2001”, diz.

 

Sem dinheiro – Cuidar da pobreza, da saúde, da violência, da educação exige dinheiro. E, para isso, as prefeituras dependem, e muito, do governo federal. Mais uma vez, há algo errado nessa equação. Empréstimos realizados com a União criam dívidas, que com a Lei de Responsabilidade Fiscal viraram caso de polícia. Os orçamentos municipais estarão à mercê do cumprimento da nova lei, que obriga o saneamento das contas e transforma em crime penal o não-pagamento das dívidas. Novos prefeitos que herdaram dívidas das administrações anteriores estarão de mãos atadas, caso de Marta Suplicy (PT), em São Paulo. Paulo Ziulkoski, da CNM, se diz a favor da lei, porque “exige transparência nas contas”, mas acredita que ela inviabilizou muitos municípios: “As prefeituras fazem empréstimos, e têm dívidas com os fornecedores da merenda, dos medicamentos e coisas do dia-a-dia. Vamos cortar despesas no que fazemos, como recolher lixo, saúde, saneamento. Serão menos serviços, menor acesso e imposto cada vez mais alto. Resultado: o cidadão desprotegido é o mais atingido”, avisa Ziulkoski.

Mais importante do que fazer milagre com pouco dinheiro, investir no social e cumprir as obrigações que, teoricamente, seriam dos Estados e da União, os prefeitos precisam estar dispostos a ampliar sua visão sobre a cidade. “Os administradores precisam perceber o alcance socioeconômico das suas políticas, porque às vezes a gente acha que as questões econômicas estão longe. Para saber se um projeto é bom ou não basta fazer a pergunta: ‘esta política distribui renda? Democratiza?’ Nosso país é rico, mas usa mal os recursos, que são de alguns privilegiados”, diz Raquel. Milton Santos acredita que “os governantes locais precisam deixar de ser síndicos, que administram as coisas constituídas da cidade, e estarem abertos para novas idéias”. Embora não acredite nas propostas das últimas campanhas – “porque são as mesmas que se faziam há mais de 20 anos” –, se diz otimista com as prefeituras deste mandato. Cidades como São Paulo e Rio de Janeiro dificilmente podem ter suas mazelas contidas na atuação de um síndico. Há de se compreender que “as cidades revelam os problemas da nação”, conclui o geógrafo.