Eles só mantêm sua ordem interna porque são capazes de utilizar energia do meio ambiente para produzir descendentes. Cada geração passa à seguinte toda a informação necessária para construir um novo ser vivo. Essa informação está em nosso DNA.

A maioria dos seres vivos tem uma única maneira de guardar informações essenciais para sua sobrevivência: o processo de cópia fiel da sequência do DNA, que ocorre na reprodução. O homem é provavelmente o único animal capaz de guardar outro tipo de informação que o ajuda a manter a ordem e a continuidade da vida: a sua cultura. No início, os elementos de uma cultura eram passados de uma geração para a seguinte através da fala. Depois surgiram a escrita, a imprensa, a fotografia, o gravador, o cinema e finalmente os computadores e a internet. Todas essas tecnologias nos ajudam a difundir e a preservar o conhecimento gerado por nossos antepassados.

Até a metade do século XX, essas duas modalidades de informação eram segregadas. Não éramos capazes de guardar informações genéticas na forma de cultura, pois não sabíamos como elas eram mantidas ou replicadas. Também não podíamos acrescentar informações culturais ao sistema de informações genéticas. Com a descoberta da estrutura do DNA por Watson e Crick na década de 50, isso começou a mudar. Nos anos 70, Fred Sanger inventou um método eficiente de sequenciamento do DNA. Começamos a poder decifrar a informação genética e aguardá-la na forma de “cultura” (para saber o que acumulamos até hoje, visite o site GeneBank: (www.ncbi.nlm.nih.gov) .

Esse estoque de informação cresceu assustadoramente nos últimos anos . Ao mesmo tempo que a espécie humana se mostrou capaz de estocar esta informação na forma de “cultura”, ela passou também a entender como poderia alterar esta informação dentro do próprio organismo, introduzindo elementos úteis ou predizendo as características dos seres vivos antes que elas aparecessem. Essa nova tecnologia guardada em nossa “cultura” é que permite construir animais e plantas transgênicas, detectar se um feto apresentará um defeito genético ou saber se uma criança terá câncer quando crescer.

O resultado desse processo é que as duas formas de informação, a genética e a cultural, começaram a se misturar. Nesta virada de século, somos capazes de acumular informação genética na forma de cultura e de incluir no patrimônio genético dos seres vivos, informações provindas de nossa vivência.

É fácil perceber por que os cientistas acreditam que a tecnologia no século XXI vai ser dominada pelo conhecimento e pela manipulação da genética. A primeira demonstração desse novo poder foi sinalizada pelo debate em torno dos transgênicos e pela transferência total da informação genética do ser humano para o domínio da cultura. Em 2001 vamos ver a sequência completa do genoma humano. Tal como a tabela periódica pautou a química e a física do século XX, a informação genômica vai pautar a tecnologia do século XXI.

No Brasil, entramos nessa nova era em uma posição privilegiada. Pertencemos ao pequeno grupo de países capazes de determinar um genoma completo e, mais importante, possuímos uma das poucas equipes capazes de dominar essa tecnologia de ponta a ponta.

Esta liderança, entretanto, corre perigo. O término do sequenciamento do genoma humano deve marcar o início do declínio do financiamento governamental para os grandes projetos genomas. A obtenção dessa informação e sua análise passa do campo da ciência para o campo da tecnologia. Assim como na segunda metade do século XX o desenvolvimento dos transístores passou das universidades para o setor privado, gerando empresas como a Intel (www.intel.com), nos próximos anos a maior parte do desenvolvimento das tecnologias relacionadas à genômica passará para o setor privado, gerando empresas como a Celera (www.celera.com).

Este movimento já se iniciou nos Estados Unidos. Lá existem hoje mais de 300 companhias que se dedicam a determinação, análise e exploração da informação genética, 25 delas com ações na Bolsa.

Este novo setor da economia americana, que já movimenta mais de 25 bilhões dólares, tem utilizado informações geradas com verbas do setor público para desenvolver e comercializar novos produtos e medicamentos. Empresas como a DoubleTwist (www.doubletwist.com) comercializam esta informação. Entre as informações comercializadas estão, é claro, as geradas pelo consórcio brasileiro. O problema do Brasil é como se posicionar nesse novo universo do qual agora participamos. Como obter riqueza para o País a partir dessa nova tecnologia? Vamos continuar somente produzindo dados com dinheiro público ou participar da nova revolução tecnológica?

O que vai ocorrer nos Estados Unidos é claro: aos poucos, as verbas governamentais serão diminuídas e substituídas pelo capital de risco privado. Esses novos investimentos devem dominar o setor nos próximos cinco a dez anos e gerar um novo boom tecnológico, similar ao que ocorreu com a tecnologia de informação nos últimos 20 anos. A ovelha Dolly, as plantas transgênicas e os orgãos artificiais são somente as primeiras indicações do que está para ocorrer.

No último ciclo tecnológico, o Brasil nem sequer sonhou em participar: não tinha a ciência necessária nem para compreender o que estava acontecendo. Hoje, depois de 25 anos de investimentos constantes em ciência no Estado de São Paulo, estamos em uma posição competitiva na área genômica, mas talvez venhamos a morrer na praia novamente.

O que falta no Brasil é o ingrediente principal que move o setor tecnológico nos países desenvolvidos: o chamado capital de risco. Sem investidores dispostos a correr altos riscos na tentativa de transformar ciência em produtos e riqueza, o ciclo tecnológico não se fecha. Por incrível que pareça, neste campo o governo fez a sua parte. O desafio, agora, está no colo do setor privado. Infelizmente este setor somente agora está se libertando do hábito de viver da reserva de mercado e dos subsídios governamentais. Hábitos que são a antítese do espírito empreendedor que move o setor tecnológico nos países desenvolvidos. Reside no subdesenvolvimento empresarial o risco que o Brasil corre de perder o barco nesse novo ciclo tecnológico.

Fernando Reinach, 44, é professor do Instituto de Química da USP e um dos responsáveis pelo sequenciamento do genoma da Xylella