Os Estados Unidos estão de olho gordo na elaboração da nova política brasileira de drogas. Depois do terrorismo, este é o outro assunto que mais mobiliza o governo americano. Se Karl Marx pregava que “a religião é o ópio do povo”, o estilo cowboy, baseado na truculência e na repressão aos usuários, se transformou numa verdadeira droga, viciando as formas de tratamento do assunto em vários países, inclusive no Brasil. Mas na batalha pela conquista de adeptos ao seu modelo, os americanos não têm o apoio da Europa. Lá, os governos vêm adotando posturas direcionadas para o tratamento humanitário dos dependentes químicos e aplicando leis mais brandas com relação ao consumo. Na terça-feira 23, por exemplo, foi a vez de o Reino Unido – tradicional aliado dos Estados Unidos na área militar – mostrar que não segue os passos americanos quando o combate é contra as drogas. O governo britânico anunciou que o porte e o consumo de maconha não será mais punido com prisão e que em breve ela poderá ser utilizada para fins terapêuticos.

O Brasil ainda está na era da pedra lascada. A carcomida legislação sobre drogas, que já completou 25 anos, não distingue usuário de traficante, estando ambos sujeitos a penas que variam de três a 15 anos de prisão e multa. Projeto de lei sobre o assunto – que foi aprovado neste mês na Comissão de Educação do Senado e vai para o plenário – considera crime a posse de drogas, mas substitui a prisão por penas alternativas. Enquanto o projeto está sendo discutido pelos políticos, especialistas debatem sobre o caminho que o País deve optar. Uma das maiores preocupações dos profissionais que tratam dependentes é com a tentativa dos americanos de exportar os tribunais para dependentes químicos, uma alternativa à prisão. É a chamada Justiça Terapêutica. Nos últimos meses, juízes e promotores brasileiros vêm sendo apresentados ao modelo americano, em viagens para os Estados Unidos, em palestras realizadas no Brasil e também com a distribuição de textos que explicam o funcionamento destes tribunais. É o lobby dos americanos.

“A Justiça Terapêutica não é boa. Coloca na mesma vala dependentes e usuários ocasionais. Há uma postura arrogante dos Estados Unidos. Eles querem impor seu modelo a toda a América Latina. A política de prevenção nos Estados Unidos faliu. Não podemos aceitar o fundamentalismo americano”, criticou o juiz criminal Wálter Fanganiello Maierovitch. Enquanto ocupou, até o ano passado, o cargo de secretário nacional Antidrogas, Maierovitch defendeu uma política mais próxima à européia e resistiu a projetos inspirados no modelo americano, como os próprios tribunais, tratamentos e a prevenção feita por policiais militares nas escolas. Nos tribunais para dependentes químicos, a abstinência é monitorada por testes para detecção de consumo de álcool e de outras drogas. “O projeto de lei que está sendo discutido no Senado abre as portas para a implantação dos tribunais”, alertou Maierovitch. A tentativa de exportar este modelo já começou a surtir efeito. No Rio de Janeiro, o juiz Guaraci de Campos Vianna, da 2ª Vara da Infância e da Juventude, instituiu o Programa Especial para Usuários de Drogas. Crianças e adolescentes do programa que não cumprirem todo o roteiro, sofrerão sanções, que incluem até mesmo o cancelamento de programa de cestas básicas.

Retrocesso – Um dos maiores especialistas em tratamento de drogados no País, o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Escola Paulista de Medicina, alerta que a exigência da abstinência não funciona. “A implantação desses tribunais no Brasil seria um grande retrocesso. O modelo coercitivo não dá certo. O dependente necessariamente tem que estar disposto a se tratar. Além disso, a maioria tem recaídas e isso não é considerado um insucesso terapêutico. Recaídas não podem ser punidas”, explicou Dartiu, que fundou, há 14 anos, o Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad), premiado pela ONU, por onde já passaram 4.500 pessoas, dependentes de cocaína, crack e álcool. De fato, a proposta dos tribunais é severa com relação a recaídas. “No sistema de tribunais para dependentes químicos, que exigem a participação de todos os infratores, não há outra saída: ou o acusado cumpre o programa com êxito, ou vai para a prisão”, diz um trecho de uma das apostilas que pregam a implantação dos tribunais no Brasil. “Se a Organização Mundial da Saúde considera a dependência química uma doença, como se pode considerar os dependentes químicos infratores?”, questiona o psiquiatra.

Um dos golpes mais duros sofridos pela linha dura americana na questão das drogas aconteceu na última semana de julho, quando a revista inglesa The Economist, um ícone do liberalismo, defendeu a legalização de todas as drogas e criticou a política desenvolvida nos Estados Unidos. A revista comparou o modelo repressivo – que ganhou corpo em meados da década de 80, quando o então vice-presidente George Bush, o pai, decretou guerra às drogas – à fracassada política de proibição do álcool, implantada pelos americanos na década de 20, que inflacionou o preço da bebida e impulsionou o mercado negro. O principal contraponto ao modelo americano é a Holanda, pioneira nos chamados programas de redução de danos, que tentam minimizar as consequências negativas do uso, sem necessariamente interromper o consumo, nos casos em que o dependente não consegue ou não quer deixar o vício. O psicólogo holandês Ernest Buning, assessor da União Européia para o assunto, explica que a política de seu país é pragmática, não parte do princípio utópico de que haverá uma sociedade livre das drogas. Por isso mesmo, trata os dependentes não como criminosos, mas como pessoas que precisam de ajuda.

“Há 25 anos a redução de danos tem sido um dos pilares de nossa política. Mas damos prioridade à prevenção. Também temos tratamentos baseados na abstinência. Mas a abstinência só funciona com pessoas motivadas e, mesmo assim, muitas sofrem recaídas”, explicou Buning. Presidente da Rede Brasileira de Redução de Danos, a psicóloga Mônica Gorgulho também está preocupada com a idéia de implantação da Justiça Terapêutica no Brasil. “A Justiça Terapêutica sugere que, após uma capacitação inicial, os juízes responsáveis serão capazes de lidar com questões de alta complexidade e sobre as quais nem os especialistas concordam plenamente, como diagnósticos, escolha de locais de tratamento, mecanismos de avaliação e controle”, observou. O debate começou. É o momento de o Brasil finalmente encarar com maturidade e realismo o problema das drogas. Caso contrário, acabará criando um verdadeiro bicho-de-sete-cabeças.

O ópio do povo afegão

F.C.

Ser viciado em drogas, em qualquer país do mundo, já é uma desgraça. Mas ser viciado, ou viciada, no Afeganistão – segundo produtor mundial de ópio, atrás apenas de Mianmar, no Sudeste da Ásia – é uma tragédia. A dura vida das mulheres que vivem sob o regime do Taleban jogou-as nos braços das drogas. Segundo o juiz criminal Wálter Maierovitch, fundador do Instituto Brasileiro Giovani Falcone, de combate ao crime transnacional, as mulheres afegãs viciadas gastam 40% de seus salários (R$ 70 mensais em média) para comprar ópio. “Cerca de 20% das usuárias têm mais de 50 anos. Elas consomem principalmente o ópio por causa de problemas de depressão, de insônia”, explicou Maierovitch, citando dados levantados pelo professor de sociologia italiano Pino Arlacchi, que em 1998 assumiu a direção do Programa de Controle das Nações Unidas sobre Drogas. O desespero – acirrado com o início do ataque americano ao país – levou ao aumento do consumo de ansiolíticos no Afeganistão e nos campos de refugiados do Paquistão.

Como a heroína consumida nos Estados Unidos vem basicamente da Colômbia (98%), o governo americano nunca se importou com as plantações de papoula (flor da qual se extrai o ópio para a fabricação de heroína) do Afeganistão, que produz 250 toneladas de ópio por ano. De acordo com Maierovitch, o preço da heroína na fronteira do Paquistão varia entre US$ 700 e US$ 800 por quilo, e chega no mercado ocidental por US$ 1.400. Rígido com os costumes e normas religiosas, principalmente com relação às mulheres, o Taleban sempre lucrou com as drogas. “O Taleban e seus opositores da Aliança do Norte sempre se utilizaram do comércio do ópio. Ganham dinheiro dos intermediários e compram armas. Por causa disso, os americanos se preocupam agora em erradicar os cultivos de papoula”, afirmou Maierovitch. A história é irônica: a primeira grande onda de produção de ópio ocorreu durante a luta contra a ocupação soviética no Afeganistão, nos anos 80. Como o dinheiro das drogas financiava a guerrilha anti-soviética, a CIA fazia vista grossa. Afinal, em tempos de guerra fria, o inimigo era outro.