Já criou fama o perfeccionismo do cineasta e diretor de tevê Luiz Fernando Carvalho. Na curta e elogiada trajetória folhetinesca, sua busca de certo requinte visual o fez amargar alguns dissabores, especialmente ao imprimir um tom viscontiano à minissérie Os Maias, da Rede Globo. Liberado temporariamente das pressões televisivas, ele colocou à prova seu talento ao encarar um desafio mais gratificante que aquele imposto pela tirania dos prazos e da audiência – levar às telas a obra-prima de Raduan Nassar, Lavoura arcaica (1975), romance em prosa poética de leitura difícil e transposição dramática equivalente. Carvalho, no entanto, saiu-se muito bem na empreitada, realizando um filme belo e torturado, que se alonga por quase três horas. Da estupenda abertura ao trágico desfecho, Lavoura arcaica (Brasil, 2001), em cartaz no Rio de Janeiro e com lançamento previsto em São Paulo para a sexta-feira 9, é em tudo fiel à obra de Nassar, que se compõe de capítulos sem pontuação, verdadeiros jorros de consciência do personagem principal, André (Selton Mello), um rebelde no sentido clássico da palavra.

Atormentado por uma paixão incestuosa pela irmã Ana (Simone Spoladore), o jovem de origem libanesa, educado no catolicismo, enfrenta a autoridade do pai severo e inabalável, vivido por Raul Cortez. Ele abandona a família de princípios austeros, para viver sozinho numa remota pensão. Preservando a estrutura do romance, a história se desenvolve a partir do encontro entre o protagonista, embriagado, e o irmão mais velho, Pedro (Leonardo Medeiros), que vai buscá-lo em seu refúgio para tentar restituir a ordem da família, numa referência à parábola do filho pródigo. Entre cobranças e confissões, misturam-se passagens da memória, criando-se uma maravilhosa orquestração de tempos.

Carvalho recusa a idéia de adaptação. Prefere dizer que seu filme, realizado durante três anos, é uma “reação” ao mundo feito de palavras amargas de Raduan Nassar. “Entrar no texto me exigiu perseguir a aventura de um imenso conjunto de sensações. Me exigiu muito mais, me exigiu viver o próprio texto”, escreveu a propósito. A julgar pela atuação do elenco, a entrega foi total. Na preparação da trupe, que passou nove semanas enfurnada numa fazenda no interior de Minas, a rotina era dura. Aprendia-se a arar a terra, a fazer pão, a bordar e, entre outros elementos da cultura árabe, a dançar os passos do dabk, a dança da grande roda, reproduzida numa das ótimas sequências do filme.

Sem um roteiro prévio e marcações precisas, as cenas nasciam de exaustivas improvisações. O resultado, obviamente, exige bastante do espectador. Principalmente porque as falas, se já eram complexas no papel, tornam-se de árdua apreensão ao ser mantidas quase intactas nas falas dilaceradas e nos monólogos em off de André. Além disso, ao criar imagens que se equiparassem às belíssimas passagens do romance, Carvalho optou algumas vezes por uma assinatura “artística” demais, algo tão perigoso quanto a banalidade em voga no cinema, que ele felizmente diz abominar.


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