A violência e a prepotência demonstradas nas cenas do crime que chocou o País não foram apenas momentos impensados do juiz Pedro Pecy Barbosa de Araújo. A explosão de ódio apresentada repetidas vezes pela televisão no momento em que assassinava o vigilante José Renato Rodrigues Coelho não foi fato isolado na vida do magistrado. Há oito anos morando em Sobral, cidade a 233 quilômetros de Fortaleza, os antecedentes de Pecy expõem uma autoridade que se fazia respeitar pelo medo e pelo poder do cargo que ocupava. Sempre acompanhado de um policial militar e, geralmente, armado, o juiz deixou na pacata Princesa do Agreste, como é conhecida Sobral, de cerca de 155 mil habitantes, um clima de revolta e silêncio. A grande maioria das pessoas entrevistadas pela reportagem se negou a falar sobre o comportamento do juiz, com medo de futuras represálias. No Residencial Ehrich de Meneses, na rua Eurípedes Gomes, onde Pecy morou por cerca de seis meses, um comerciante, que há mais de 20 anos trabalha no local, afirmou que não foram poucas as vezes em que o juiz foi visto embriagado e urinando na calçada. “Cansei de ver isso. Ele descia do prédio e ficava ali, bem no meio da rua”, conta.

No restaurante Aragão, próximo a um posto da Polícia Rodoviária Federal, o juiz mos-
trou mais uma vez que se fazia respeitar pelo terror. Não atendido como gostaria pelo garçom do estabelecimento, Pecy ameaçou prender o rapaz. A história é confirmada por um casal de médicos que estava no local no momento, mas também preferiu não se identificar. O pai do vigilante, o aposentado Renato Coelho, já havia confirma-
do a ISTOÉ outro episódio de abuso de autoridade ocorrido em Sobral. Numa chur-
rascaria, assim que o juiz assumiu a Comarca de Sobral, o comerciante José Sarney conversava com amigos, enquanto o juiz bebia cerveja acompanhado de uma de suas filhas. Cinzas do cigarro de uma mulher que estava com Sarney caíram próximo aos pés do juiz, que imediatamente se levantou, apontou a arma para o comerciante e disse que ele (Sarney) estava preso. Os pedidos de desculpas do rapaz não adiantaram. Ele esperou uma Kombi da Polícia Militar e foi preso, sendo liberado à noite. Já num posto de gasolina, o magistrado chegou a ameaçar o frentista porque este teria deixado cair um pouco de combustível na funilaria de seu carro.

Não bastassem essas manifestações de truculência, o deputado estadual Francisco Cavalcante (PSDB) confirmou à reportagem o envolvimento do juiz com o pistoleiro Idelfonso Maia Cunha, conhecido por “Mainha” e condenado a 58 anos de prisão por crimes de pistolagem. Segundo o deputado, os próprios vizinhos de uma fazenda do juiz, em Campos Belos, município de Caridade, a 78 quilômetros de Fortaleza, disseram que o Mainha chegou a morar na fazenda a pedido de um amigo do juiz. O magistrado nega o envolvimento com o criminoso. O deputado já encaminhou pedido de investigação ao Tribunal de Justiça.

Denunciado – A procuradora-geral do Estado do Ceará, Iracema do Vale, garantiu que encaminhará uma representação com as novas denúncias ao TJ e espera uma investigação rigorosa. Ela já denunciou o juiz por homicídio duplamente qualificado, com pena que pode ir de 12 a 30 anos de prisão. O magistrado está há 19 dias preso no quartel do Comando Geral do Corpo de Bombeiros, em Fortaleza, pelo assassinato de José Renato, 32 anos. O crime aconteceu no dia 27 de fevereiro, quando o vigilante foi rendido e morto com um tiro na nuca, dentro do supermercado onde trabalhava havia três dias. Desde a prisão, o juiz também responde a um processo administrativo, que poderá culminar na advertência, suspensão ou perda do cargo. Com 34 anos de serviço e 57 de idade, Pecy já possui tempo para requerer a aposentadoria, e meses antes do crime havia entrado com o pedido de contagem de tempo de serviço, mas a polêmica se receberá ou não o benefício só será resolvida com o término dos processos.

A procuradora justificou a denúncia dizendo que, além do motivo torpe, houve surpresa, não dando à vítima possibilidade de defesa. A representante do Ministério Público enfatizou, ainda, que o juiz chegou a aplicar um golpe de arte marcial, imobilizando o rapaz, deixando claro que a vítima não representou, em nenhum momento, perigo ao magistrado. No texto da denúncia de 11 páginas entregue ao TJ, Iracema do Vale diz que a “vítima jamais imaginaria que um cidadão, presume-se, acima de qualquer suspeita iria se nivelar ao mais sanguinário dos meliantes e ao mais violento e impiedoso dos justiceiros”, pois o juiz não teve piedade do vigilante, mesmo ele estando indefeso e clamando pela própria vida. Apesar de todas as investigações estarem correndo em segredo de Justiça, o Ministério Público Estadual requereu ao relator do inquérito, desembargador Ernani Barreira, que as sessões do processo e do julgamento sejam abertas ao público e à imprensa.

Doente – Depois de encaminhados os autos do processo para a defesa do juiz, os advogados terão 15 dias para apresentar a defesa por escrito e o réu se pronunciar. Nos dois primeiros depoimentos à Justiça, Pecy confirmou que o tiro foi acidental. Procurado para falar sobre as denúncias de abuso de autoridade, o advogado do juiz, Paulo Quezado, disse que ele estava doente e não poderia falar à imprensa. Segundo o desembargador Ernani Barreira, não haverá relaxamento de prisão ou habeas-corpus, pois todos os prazos do processo estão sendo cumpridos. Ele acredita que em 90 dias o processo será encerrado e o juiz levado a julgamento.

O sentimento em Sobral é de muita revolta. A população acompanha os depoimentos das testemunhas com bastante interesse. Matilde e Isadora Lima de Souza, que estavam no supermercado com Pecy no dia do crime, quase foram agredidas. O tumulto fez com que fosse convocado um reforço policial para acalmar as centenas de pessoas que faziam vigília em frente ao Fórum. Aposentado do Banco do Brasil, diabético, Renato Coelho, pai do vigilante, vem se configurando uma grande fortaleza. Ao lado da bicicleta que o filho usava para trabalhar, ele diz acreditar plenamente na Justiça. É só isso que ele espera no dia do julgamento: “É muito importante a punição do juiz, para que outros casos não se repitam.”