Em casa que não tem pão, todo mundo briga e ninguém tem razão. Com ligeiras ressalvas, o velho ditado pode exemplificar o que acontece hoje na Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem) de São Paulo. Desde o início do ano, ocorreram 19 rebeliões em suas unidades, com 24 fugas e 881 jovens fugitivos. A maior de todas, desde 1999, aconteceu na sexta-feira 11, no Tatuapé. No mesmo dia, em Franco da Rocha, uma funcionária foi estuprada e outra molestada. ISTOÉ permaneceu por sete horas, na terça-feira 15, no chamado quadrilátero do Tatuapé, na zona leste da capital paulistana, onde ouviu internos e presenciou uma acirrada discussão entre integrantes do corpo técnico da instituição – psicólogos, assistentes sociais e pedagogos. O que se vê ali é que a Febem está dividida. Há resistências a mudanças promovidas pelo secretário de Justiça do Estado e presidente da instituição, Alexandre de Moraes, e a insatisfação de grande parte do quadro de funcionários sugere o que está por trás da nova onda de rebeliões.

De um lado está o grupo de diretores e funcionários identificados com as entidades da infância e de direitos humanos, que se alinha com a proposta de reformulação do secretário, iniciada com o afastamento de 42 acusados de tortura e a demissão de 1.751 funcionários. Do outro estão funcionários – entre eles coordenadores de equipe, a área de segurança e até psicólogos, assistentes sociais e pedagogos, que rejeitam as mudanças. A resistência é visível. Até mesmo vigilantes terceirizados, já na porta de entrada, dizem que aquilo ali “não tem jeito”. Na reunião interna dos técnicos, com cerca de 100 participantes, foi defendida a volta dos antigos funcionários – ou de parte deles, pelo menos. Alguns discursos eram bastante próximos dos setores considerados “linha dura”, que seriam os responsáveis pelos espancamentos e torturas. “Tenho seis anos de Febem e nunca vi isso, moleque andando para lá e para cá, usando as xícaras dos funcionários, tomando café, sentando na mesa e mexendo no computador. É preciso reimplantar a ordem. Gosto do trabalho, mas conviver com essa situação é difícil”, reclamou uma das técnicas, bastante aplaudida. Participantes que percebiam a presença dos repórteres faziam duras críticas à direção da Febem. Diziam que a instituição não tem proposta pedagógica – “Se tem, ninguém sabe qual é” –, reclamavam que não há controle e, supostamente, quem mandaria lá hoje são os jovens infratores. “Banalizaram até o estupro”, indignava-se uma psicóloga.

Diretores de unidade rebatiam. Diziam que o corpo técnico era responsável por ter se calado durante anos e mantido a conivência com os espancamentos. “Se há caos, ele foi instalado há 30 anos. Temos de saber e assumir o nosso papel. Ou vamos arregaçar as mangas e atender os meninos ou fingir que damos atendimento e mandá-los para a morte”, respondeu uma encarregada técnica. Fora da reunião, diretores que defendem as mudanças diziam que informações foram passadas à imprensa com o objetivo de incriminá-los. Janete Amaral,
diretora da UI (unidade de internação) 16, foi acusada de esconder-se num
banheiro enquanto a tropa de choque da PM espancava adolescentes que estavam sob seus cuidados. “Eu havia saído para verificar se tudo estava calmo no quadrilátero. Quando soube das agressões, fiz o boletim de ocorrência e tomei providências”, garantiu.

Outros coordenadores e internos acusam o “choquinho” – a divisão de segurança da própria Febem – de espalhar boatos de que o “o couro vai voltar”, o presidente da Febem “vai cair” e o comando da instituição “vai ser do Conte Lopes” (deputado estadual do PP e ex-PM, famoso defensor da pena de morte). “Na rebelião, a tropa de choque da PM também entrou batendo. Rasgaram a minha perna com um escudo e fiquei dois dias sangrando, sem atendimento”, denunciou A.R.S., 16 anos, que, quatro dias depois, ainda não tinha recebido curativo. Ele disse ter apanhado
quando voltava de atendimento na enfermaria para sua unidade.

Se todos brigam e ninguém tem razão, pão, no entanto, não é o problema da Febem. A instituição gasta cerca de R$ 2 mil mensais por interno, praticamente sem retorno, pois o índice de reincidência é muito alto. Esse dinheiro é capaz de garantir a um jovem o estudo em colégio de elite, curso de inglês e musculação, e até diversão nos finais de semana. A verdade é que o modelo de grandes abrigos para jovens infratores, que repete o sistema das penitenciárias, está falido e funciona mais como uma escola de crime. Há 25 anos, pelo menos, especialistas na área apontam como solução – e as autoridades e políticos prometem – a construção de pequenas unidades. Mas ninguém sabe explicar por que elas nunca são implantadas. A alegação é que o custo é alto, mas alto é também o dinheiro do contribuinte que vai para o ralo, ao custear um modelo que não reeduca.