Francisco nunca foi tão Francisco como na encíclica “Laudato si”, apresentada oficialmente na quinta-feira 18 no Vaticano. Abrindo com o “Cântico das Criaturas”, de autoria do santo de Assis, o argentino Jorge Mario Bergoglio construiu um documento contundente, sobre como a devastação do meio ambiente cria relações de exploração e desigualdade. A tão comentada encíclica ecológica, a primeira sobre o assunto da história da Igreja Católica, tem como objetivo final os pobres, a grande preocupação do pontificado de Francisco. O tema controvertido já causou reações – de elogios da Organização das Nações Unidas a críticas de católicos conservadores americanos, como o candidato republicano à presidência Jeb Bush. Não era para menos. O pontífice criticou abertamente as nações ricas, as multinacionais e a cultura do consumismo e do descarte, entre outros alvos. “Essa encíclica vai dar uma reviravolta na discussão ecológica, quase sempre restrita ao meio ambiente, esquecendo que não existe meio ambiente, mas sempre o ambiente inteiro dentro do qual cabem as pessoas, as instituições e todas as coisas desta nossa Terra-mãe”, afirma Leonardo Boff, um dos primeiros teólogos no mundo a estudar a questão da fé e da ecologia, que, a pedido do papa, enviou vários textos seus para Roma.

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INSPIRAÇÃO
O pontífice argentino faz alusão a São Francisco de
Assis em várias partes do documento

Na sua “Laudato si”, Francisco fala sobre a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta e a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo. Diz que o progresso é bem-vindo, gera benefícios, mas há muitos problemas gerados por ele. Critica o comportamento predatório e consumista dos países ricos. “Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político parecem concentrar-se, sobretudo, em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas”, afirma. O papa diz estar preocupado com a fraqueza da reação política internacional. “Há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum.” E ataca as multinacionais, ao mencionar a Amazônia, que chama de “pulmão do planeta” e dizer que é impossível ignorar os enormes interesses econômicos internacionais que podem atentar contra as soberanias nacionais. “Com efeito, há propostas de internacionalização da Amazônia que só servem aos interesses econômicos das corporações internacionais.” Para o teólogo Antônio Manzatto, definitivamente, “Laudato si” é um documento social, não técnico. “Francisco foi muito corajoso”, diz o padre. “Ele afirmou que, se os países pobres têm dívidas em dinheiro, as nações ricas têm uma dívida ecológica com eles, portanto deveriam costurar um acordo.”

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CERIMÔNIA
O cardeal Peter Tukson (à dir.) e o membro da igreja ortodoxa
Joannis Zizioulas na apresentação da encíclica na Santa Sé

No documento, o papa fala que o mundo, que chama de nossa casa, está se transformando num imenso depósito de lixo. Mas uma de suas maiores preocupações é o aquecimento global. E novamente a maior inquietação são os países em desenvolvimento. “Muitos pobres vivem em lugares particularmente afetados por fenômenos relacionados com o aquecimento e os seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos chamados serviços do ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos florestais.” Para o professor Antonio Carlos Alves dos Santos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a encíclica é, também, um recado aos setores conservadores do catolicismo “Principalmente o americano, que não aceita o problema do aquecimento global.” Não à toa, o senador republicano ultraconservador Rick Santorum disse que Francisco não tinha autoridade para escrever sobre o tema ecologia. Esqueceu-se que o papa jesuíta tem mestrado em Química – e fez o documento muito bem assessorado.

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As nações ricos são novamente atacadas na “Laudato si” quando o assunto é o esgotamento dos recursos naturais. No documento, Francisco diz que é impossível sustentar o atual nível de consumo dos países mais desenvolvidos e dos setores mais ricos da sociedade, onde o hábito de desperdiçar e jogar fora atinge níveis incomuns. “Já se ultrapassaram certos limites máximos de exploração do planeta, sem termos resolvido o problema da pobreza”, diz. Para se antecipar às criticas de que ele estaria proclamando uma volta ao passado, afirmou: “Ninguém quer voltar para a caverna, mas é essencial retardar a marcha, ver a realidade de outra forma e recuperar os valores e propósitos destruídos.”

Fotos: VINCENZO PINTO/AFP