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Claudio Dantas Sequeira, repórter da IstoÉ da sucursal de Brasília

Quem caminha pelas ruas empoeiradas da capital Porto Príncipe, do Haiti, vive um profundo sentimento de impotência parecido ao dos milhares de feridos e desabrigados haitianos, que, ou correm a esmo em busca de socorro ou se abandonam à própria sorte, prostrados entre os escombros. O vai-e-vem de corpos em carrinhos de mão ou nos braços de familiares acentua o tom de desespero. Gritos de uns, silêncio embargado de outros. Um cenário dantesco.

Estive no Haiti na última semana de junho de 2006, dois anos após o início da missão de estabilização da ONU e apenas um mês depois da eleição do presidente René Preval. Como a maioria dos jornalistas brasileiros, vinha cobrindo a crise naquele país por meio de agências de notícias, informações de veículos locais e fontes militares e diplomáticas. E até aquele momento, não compreendia perfeitamente a necessidade, ou mesmo a conveniência política, da presença de tropas brasileiras na operação de paz. Mas minha perspectiva sobre a cobertura mudaria sensivelmente ao passar das primeiras horas. As impressões de quem visita o Haiti são indeléveis. Na estrada do pequeno aeroporto, que hoje precisa comportar toda a ajuda humanitária internacional, até a capital Porto Príncipe, a paisagem que vi foi de desolação. Poucas árvores, muito cimento e fumaça. O uso do carvão em larga escala devastou as florestas tropicais do país. Sem cobertura vegetal, o sol escaldante do Caribe fez do país uma espécie de deserto de cimento e fumaça. Às 10h, a temperatura já alcançava os 38º e a sensação térmica era ainda mais poderosa. Para aplacá-la, “só água mineral”, alertava um funcionário da ONU, enfatizando a escassez de água potável e o saneamento praticamente inexistente. Casas e edifícios se destacavam pela ausência de acabamento e pintura, para evitar a cobrança de impostos. A maioria feita de tijolos de cimento, sem vigas, apoiadas umas nas outras. A cor cinza predominava. O privilégio de estar numa van da ONU equipada com ar condicionado tem o efeito de um tapa na cara dos haitianos, que, ao me verem, reagiam com expressões de ódio contido. Primeiro país a se tornar independente nas Américas, o Haiti sofreu nos últimos 200 anos nada menos do que 32 golpes de Estado, decantando uma lamentável tradição política ditatorial, corrupta e extremamente violenta. Com a renúncia do ex-presidente Jean-Betrand Aristide, no início de 2004, os haitianos passaram a viver à revelia do Estado, num mosaico de barbárie formado pelas milícias armadas por Aristide, a polícia nacional haitiana e ex-militares.

Naquela visita, há três anos, já era difícil imaginar como os haitianos conseguiam sobreviver. O desemprego atingia 85% da população, levando as pessoas a passar o dia em frente a suas casas sem ter o que fazer. Nas calçadas, alguns se arriscavam num comércio informal parecido aos mercados populares da Idade Média. A céu aberto, pedaços de carne crua, carvão, peças de roupas. A eleição de Préval e mudanças na estrutura da Minustah tiveram efeito direto na redução da criminalidade. E, aos poucos, abria-se o caminho para uma lenta recuperação econômica, ainda invisível às estatísticas. A US$ 1, era possível fazer chamada local num telefone sem fio oferecido por um ambulante. Numa calçada esburacada da avenida Delmas — a principal de Porto Príncipe —, o haitiano Canon Michelet, de 56 anos, preparava seu ponto: algumas mangas e bananas empilhadas numa caixa de madeira. Assim, dizia ele, sustentava a família de cinco filhos com um rendimento de cerca de 20 gourdes diários, algo em torno de US$ 0,50. A seu lado, outro ambulante vendia biscoitos em forma de disco feitos de argila, gordura e sal. A ‘iguaria’, popular entre os haitianos, surpreende o visitante. Paguei US$ 1 para provar a mistura, que deixa na boca um gosto de desespero.

Se os escombros do terremoto recente deixaram as vias intransitáveis, antes os engarrafamentos já eram uma constante em Porto Príncipe. Por dois motivos: excesso de veículos e ausência de regras de trânsito, sinais e faixas de pedestres. A frota é composta em sua maioria por modelos norte-americanos da década de 1980 e em péssimas condições de uso. O trânsito era controlado pelos capacetes azuis da Minustah. Mas apesar da miséria, ao caminhar pelas ruas de Porto Príncipe, me surpreendeu o grande número de salões de beleza. O povo haitiano é vaidoso e orgulhoso.

Ao acompanhar a comitiva do então ministro da Defesa, Waldir Pires, na missão de reconhecimento, também tive a chance de conhecer os principais símbolos e pontos da capital: o Palácio do Governo, uma construção neoclássica belíssima cravada no centro da cidade, e a catedral de Porto Príncipe; o Forte Nacional no alto da favela de Bel Air, o Hotel Christopher, centro operacional da Minustah, e o Hotel Montana, que hospedava comandantes militares e autoridades civis. Conheci ainda o principal Hospital Universitário e a Universidade do Haiti, que então abrigava o batalhão brasileiro. E o Forte 22, um mercado abandonado adaptado pelas tropas como base de apoio na entrada da favela de Citè Soleil. Na ocasião, a Companhia de Engenharia do Exército brasileiro inaugurou um trecho de 500 metros de asfalto e preparava iluminação para a praça central. O conjunto de ações destinava-se a estabelecer o mínimo de infra-estrutura urbana para permitir a entrada de outros serviços públicos. Com o terremoto de terça-feira 12, esses locais vieram ao chão, deixaram de existir. Solaparam vidas, apagaram os resquícios da colonização francesa e os referenciais institucionais de um Estado temerário, frágil demais. Parece que nenhuma ajuda humanitária será suficiente.