Jason Papparis, dono de uma tapeçaria em Manhattan, abriu o envelope que acabara de receber e foi surpreendido com uma baforada de poeira. Poucas horas depois, uma batalha alucinante deflagrou-se em seu corpo. Calafrios, febre alta, dor no peito, uma cruciante dor de cabeça. Papparis morreu em 24 horas, com sangramentos no pulmão e no cérebro. Ele serviu de cobaia para que o técnico russo em armas biológicas Yuri Davidov testasse o poder mortal do pó da bactéria do antraz, fabricado num laboratório montado em sua casa. Com um grupo de neonazistas, o próximo passo de Davidov será disseminar as bactérias que mataram Papparis no sistema de ventilação de um prédio federal e espalhá-las sob a forma de aerossol por todo o Central Park. Uma vingança contra a “impostura do sonho americano impingida ao mundo”.

A trama horripilante é do romance científico e premonitório Vetor, lançado em 1999 pelo médico e escritor Robin Cook. Numa nota ao final do livro ele adverte: a questão não é se um ataque bioterrorista pode ou não ocorrer, mas quando. Material não falta. Existem cerca de 46 bancos no mundo que comercializam ou fornecem germes letais para pesquisas acadêmicas, mas também para programas secretos de bioarmas desenvolvidos por vários países. A maioria testa o bacilo do antraz, extremamente resistente e fácil de ser transportada. Além dos alarmes falsos que agitaram o Brasil, a primeira suspeita de antraz chegou também à Argentina.

As cepas do bacilo do antraz podem ser encontradas em estábulos, pastos, no pêlo, no couro e na carne de animais bovinos infectados. Se utilizadas em pequenas quantidades, não exigem técnicas sofisticadas de laboratório para se transformarem em armas. O processo consiste em cultivar as bactérias em um caldo orgânico para que continuem sua furiosa reprodução e formação de esporos (espécie de casca ou semente que as tornam mais resistentes). Os esporos são isolados do líquido e secados. Misturados a amido de milho, adquirem a forma de pó. Para promover um ataque em massa, no entanto, as etapas são mais complicadas. “É difícil dispersar esporos em grande quantidade. Podem grudar na tubulação ou formar grumos, ganhar peso e cair no chão, o que impede a inalação”, explica Luiz Jacinto da Silva – chefe da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) do Estado de São Paulo. Mesmo assim, quem anda apavorando o mundo com envelopes com antraz está longe de ser um amador. A carta enviada ao Senado americano continha partículas de antraz ainda menores do que as quantidades microscópicas de outros envelopes, o que potencializa sua suspensão e difusão. O pulo do gato é triturar os esporos e lançar mão de aditivos químicos. Para uma pessoa ser infectada, são necessários de cinco mil a oito mil esporos – juntos, não chegam ao tamanho de um ponto. Para que não seja destruído pelo organismo e não se aloje no pulmão, cada esporo não pode ter mais do que cinco microns de medida (cada micron tem um milésimo de milímetro).

O Bacillus anthracis foi uma das primeiras bactérias identificadas pelos cientistas. Em 1881, o químico francês Louis Pasteur desenvolveu culturas do microorganismo para produzir uma vacina. O bacilo provoca a doença do carbúnculo, adquirido de três maneiras: pelo contato da pele (se houver corte ou arranhão), por ingestão de carne contaminada ou por inalação. O período de incubação é de um a sete dias. Se detectado a tempo, o bacilo pode ser combatido com antibiótico.

Vacina – Bactérias responsáveis pelo botulismo e pela peste, além do vírus da varíola, são outros germes estudados para uma guerra biológica. O agente da varíola, o Poxvirus variolae, é o que mais tem tirado as noites de sono das autoridades sanitárias americanas. Por ser transmitido de uma pessoa a outra pela respiração, teria mais sucesso em criar uma epidemia terrorista, pensam os analistas. A doença foi erradicada em 1977, através de um programa mundial de vacinação. Transformar o vírus da varíola em munição terrorista é ainda mais complicado do que com o antraz. Vírus são infinitamente menores do que bactérias, mais voláteis e menos resistentes. Vírus precisam de tecidos celulares vivos para se replicarem, enquanto que as bactérias se multiplicam espontaneamente em meios onde não existem células vivas. Em função disso, a manipulação dos vírus requer mais profissionalismo, laboratórios de segurança máxima com portas duplas, roupas espaciais, ar reciclado e chuveiro de descontaminação. Qualquer descuido é fatal. “No caso dos camicases, tudo é possível. Eles podem até se infectar e sair pelas ruas contagiando o mundo”, diz o chefe da Sucem.

Mas é preciso colocar um freio na paranóia. “Não dá para distinguir o que é possível do que é realizável. Produzir alguns miligramas de esporo é fácil. No entanto, 100 quilos, o suficiente para arrasar uma cidade de alguns milhões de habitantes, demandariam 100 mil litros de cultura (cinco mil galões de água) e uma despesa de US$ 25 bilhões, segundo estudos americanos. Sai mais barato jogar uma bomba”, diz o parasitologista Hildebrando Pereira da Silva, do Centro de Pesquisa Tropical de Rondônia.

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O bioterrorismo vem obrigando os cientistas a pensar em soluções rápidas de defesa e prevenção. O Departamento de Energia dos EUA está desenvolvendo sensores capazes de detectar a presença de substâncias estranhas no ar. A empresa Idaho Technology criou uma máquina que diagnostica o antraz em trinta minutos. Além da tecnologia, as técnicas de sequenciamento genético também deverão ser utillizadas no combate aos germes mortíferos. Cientistas de Harvard acabam de descobrir, nos ratos, um gene resistente ao antraz. Um outro grupo desenvolveu uma molécula capaz de proteger esses animais de doses letais do bacilo. A Universidade de Stanford trabalha na identificação dos genes que são ativados ou desativados no organismo humano infectado. O thriller Vetor termina com final feliz e apenas quatro vítimas fatais. Longe da ficção, os cientistas temem que os terroristas também lancem mão de ferramentas genéticas para criar germes cada vez mais resistentes a vacinas e antibióticos.

Colaborou Adriana Souza e Silva

 

Brasileira no front

Liana Melo

 

Uma jovem de sorriso largo e modos delicados está ajudando o governo americano na guerra contra o bioterrorismo. É a infectologista Luciana Borio, 31 anos, que saiu do Brasil nos anos 80 e nunca mais voltou. Ela trabalha no Centro para Estudos de Biodefesa Civil da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, e é braço direito de um dos maiores especialistas do mundo em armas biológicas, o americano Donald Henderson.

ISTOÉ – O mundo está preparado para uma guerra biológica?
Borio – Não, mas o risco de cada país é diferente. É claro que uma epidemia de varíola nos Estados Unidos se transformaria num problema mundial. O tempo de incubação é de 11 a 14 dias. Nesse período, os americanos poderiam viajar para outros países, levando consigo a doença. A menos que isso ocorra, o Brasil estaria fora de risco porque não tem inimigos.

ISTOÉ – Se os EUA e a ex-URSS acabaram com os programas de bioarmas, por que têm estoques de varíola?
Borio – A Organização Mundial de Saúde pediu que destruíssem os repositórios em 1999, mas a data foi adiada para 2002 porque os EUA temiam uma guerra biológica.

ISTOÉ – Que outros microorganismos podem ser usados numa guerra?
Borio – Qualquer bactéria ou vírus. Em 1993, uma seita usou salmonela na cidade de Oregon. Sabe-se ainda que o laboratório American Type Culture Control (ATCC) chegou a vender cepas da bactéria do antraz para o Iraque. Temo apenas que a liberdade da ciência venha a acabar devido ao bioterrorismo. Essa pode ser uma consequência inevitável no futuro.

ISTOÉ – Qual seria a quantidade necessária para promover um ataque de grandes proporções?
Borio – Uma bomba de hidrogênio de um megaton mata entre 570 mil e 1,9 milhão de pessoas, enquanto 100 quilos da bactéria do antraz poderiam matar entre um milhão e três milhões de pessoas. Ou seja, uma cidade como Washington.



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