O medo do bacilo em pó atravessou o Atlântico e chegou ao Brasil. A guerra bacteriológica, por enquanto, é muito trote, confusão e prejuízo. “A síndrome antraz está tendo uma repercussão maior sob o ponto de vista mental do que físico”, ressalta o psiquiatra Jacob Pinheiro Goldberg, uma vez que a estatística de vítimas do antraz é irrisória. A paranóia do terror subiu um tom na madrugada da quinta-feira 18, quando uma bomba de fabricação caseira explodiu na porta de uma grande loja do McDonald’s no centro do Rio. Um dos maiores símbolos americanos foi atingido, segundo a polícia e a assessoria da empresa, por um vândalo e não por um terrorista. No entanto, o artefato com 500 gramas de dinamite atingiu um raio de 50 metros e foi analisado por funcionários do consulado dos EUA. Inicialmente a intromissão americana irritou o secretário de Segurança, Josias Quintal. A lanchonete voltou a funcionar na hora do almoço. O fantasma do antraz desembarcou no País domingo 14, quando um avião da Lufthansa, vindo de Frankfurt, pousou no aeroporto Tom Jobim, no Rio. Embaixo da cadeira 39G havia um pó branco. As primeiras vítimas do pânico foram os passageiros, a tripulação e os funcionários da limpeza da empresa Globe Ground, que encontraram a substância, mais tarde identificada extra-oficialmente como leite em pó. No local, um casal viajava com os filhos. A paranóia custou à companhia aérea alemã R$ 320 mil, englobando atendimento médico, remédios, permanência do avião no aeroporto e estadia de 83 passageiros em hotel.

Depois do avião da Lufthansa, uma sucessão de alarmes falsos infernizou a vida do País. Na quarta-feira 17, o pó branco chegou a São Paulo num avião da ponte aérea da Varig. Cinco vôos foram cancelados após a limpeza encontrar o pó na aeronave. O prejuízo chegou a R$ 12 mil. No dia seguinte, foi a vez de a TAM sentir no bolso a “síndrome antraz”. Dois aviões da companhia foram retidos pela Polícia Federal em Brasília e no Recife. No compartimento de bagagem das aeronaves foi encontrado, mais uma vez, o pó branco.

O tumulto foi grande. A TAM teve que fechar um acordo com a Transbrasil para realocar os passageiros e dar prosseguimento aos vôos. Só de vale para passageiros que tiveram as malas retidas para análise, a empresa desembolsou R$ 5.450. “Essas palhaçadas causam prejuízo não só para as empresas, mas também para os passageiros. Os vôos atrasam, as bagagens correm o risco de ser retidas e muita gente pode perder seus compromissos”, desabafou o coordenador da comissão de segurança de vôo do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias, Ronaldo Jenkis.

Dezenas de envelopes com pozinho foram distribuídos no País, mobilizando um verdadeiro exército antiterror. A cada chamada, uma equipe de até 20 homens, formada por bombeiros, integrantes da Defesa Civil, das polícias Civil e Federal é mobilizada. No cálculo do capitão Alexandre Zeleniakas Correia, da Defesa Civil do Rio Grande do Sul, a força de trabalho dessa equipe custaria aos cofres públicos no mínimo R$ 1,5 mil por saída. Isso sem contar o custo dos equipamentos utilizados. Cada traje especial (roupa, máscara, luvas, botas, bomba descontaminante e equipamento respiratório) está avaliado em R$ 8 mil. Por conta das inúmeras chamadas, o governo gaúcho vai comprar 15 novos equipamentos. As entidades de referência para analisar os casos de antraz, entre elas a Fiocruz (Rio) e o Adolfo Lutz (São Paulo), foram obrigadas a desviar sua atenção para casos como o da carta endereçada ao consulado dos EUA no Rio, na segunda-feira 15, e a de tantas outras que pipocaram em vários Estados, todas com resultados negativos. O “laudo” do produto achado numa correspondência entregue à Petrogás, subsidiária da Shell, no Rio, foi açúcar. Ao ver o tumulto formado na empresa, que recebeu 64 ligações de todo o mundo para falar sobre o caso, um funcionário esclareceu o “ataque”: havia derramado açúcar nas cartas quando tomava café.

Bioengraçadinhos – “O que está acontecendo é um psicoterrorismo. As brincadeiras atrapalham a rotina do hospital”, ressaltou o diretor-técnico do Emílio Ribas, Vasco Carvalho Pedroso. Mais uma vez o contribuinte paga a conta. O presidente da Fiocruz, Paulo Buss, revolta-se com a inconsequência dos trotes, lembrando que não há casos confirmados de antraz no País. “O Brasil está fora da linha de bioterrorismo. O que temos são bioengraçadinhos”, ataca. A polícia adverte aos bioirresponsáveis que, identificados, serão enquadrados criminalmente e poderão pegar de um a seis meses de prisão, além de multa. Em Santa Catarina, o empresário Carlos Ghizzi foi preso após enviar a funcionários de sua empresa envelopes com pó branco. O diretor do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Artefatos de Borracha, Fernando Barbosa, foi enquadrado na quarta-feira 17 por perturbação da ordem pública. Ele enviou uma correspondência à presidência da entidade com pó branco usado por dentistas. Nos dois casos, era “brincadeira”.

“No momento existe o inimigo oculto. Isso mexe com a fantasia e os arquétipos mais infantis da neurose humana: o bicho-papão. Antraz é tudo e é nada. Miticamente, ele lembra o pó de pirlimpimpim”, teoriza Jacob Pinheiro Goldberg. Segundo ele, a brincadeira com as cartas está no campo da beligerância infantil. “O risco é que isso se transforme em uma brincadeira macabra.” Para o psiquiatra, o comportamento moleque é similar ao da guerra selvagem, não regida pelas convenções. “É um jogo de esconde-esconde. Ninguém sabe quem é o inimigo, qual a arma e o que ele pretende. Isso dá vazão ao imaginário e ao simbólico em níveis inéditos na história da humanidade”, conclui.

Apesar dos esforços para se evitar a disseminação do vírus do pânico, a Bayer do Brasil, dona da patente do Cipro, sinaliza uma corrida às farmácias. A empresa anunciou que vai acelerar a produção do antibiótico mais eficaz para atacar a bactéria. Os pedidos aumentaram 20% em relação a setembro. Outro setor que tem ganho com a paranóia é o da segurança. As principais multinacionais americanas no Brasil evitam o tema. Negam que tenham alterado sua rotina e intensificado a segurança. Já a Associação Brasileira de Empresas de Segurança e Vigilância estima que o faturamento no setor poderá crescer 5% este ano, movimentando R$ 8,2 bilhões.

A modelo Luiza Brunet, que tem a filha Yasmin, 13 anos, estudando na Escola Americana, no Rio, disse que não está preocupada com a segurança. “Na última reunião com os pais eles disseram estar mais atentos e ter aumentado os cuidados com a segurança externa. Superar o que vimos em Nova York vai ser difícil”, lembra a modelo, que estava com a filha na cidade no dia 11 de setembro. Thomas Kirsten, diretor-financeiro da escola, admitiu ter contratado uma empresa de segurança com rádio-comunicação para acompanhar o movimento num raio de 200 metros da escola, que abriga filhos de ricos e famosos, como Sasha.

Dor de cabeça – Estar próximo a símbolos americanos tem se tornado um pesadelo para muitos, como é o caso da cabeleireira Silvia Midori, dona do salão que fica em frente ao consulado dos EUA em São Paulo. Sílvia pensou até em processar o consulado pelos prejuízos em seu salão. “Tenho seguro de vida contra todo tipo de acidentes, menos para terrorismo. Trabalho numa área de risco e sob tensão. Além disso, cerca de 30% de minhas clientes deixaram de frequentar o salão”, disparou a cabeleireira. Já o jornaleiro José Maria Francisco de Andrade, dono da banca que fica em frente ao consulado dos EUA no Rio, nada teme. “Não estou assustado com terrorismo. Para mim, o Brasil já está em guerra. Morre gente todo dia de fome e de assassinato.” O psicanalista Chaim Samuel Katz explica o medo, mas também não vê motivo para pânico no Brasil. “Nós já tivemos uma teoria muito antiga que dizia que a peste viria pelo ar. O medo é porque não 0era um inimigo visível. A guerra bacteriológica provoca terror porque não discrimina quem é culpado ou inocente, velho ou novo.” Chaim responsabiliza os meios de comunicação pela propagação do terror. “O pânico vende bandeiras, comida, aumenta o estoque de água mineral em casa. O Iraque perdeu cinco mil crianças e não li isso em lugar algum. É preciso recorrer ao site da Unesco para saber do assunto. Não aparece sequer na voz do secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Ele fala quando matam seis mil pessoas do grupo mais importante do mundo”, polemiza.

Apesar dos horrores, da paranóia verde-e-amarela e das brincadeiras de mau gosto, não falta espaço para o bom humor. Para o Halloween (festa das bruxas), importada dos americanos, a Casa Turuna, tradicional na venda de produtos carnavalescos do Rio, está faturando alto com máscaras de George Bush e de Bin Laden. A máscara do terrorista saudita é três vezes mais cara, R$ 15, e com direito a turbante. E apesar do medo que vem do Oriente, Bin Laden é sucesso de vendas.

A imagem do terrorista também está sendo explorada para ações nada festivas. A polícia carioca encontrou na favela Vila Ideal, na Baixada Fluminense, 48 papelotes de cocaína com a foto de Bin Laden. A nova grife do narcotráfico inspira ainda frases no melhor estilo Al-Qaeda. Na Mangueira, meio quilo da droga foi interceptado com a inscrição “Bombardeio Afeganistão”. O pó-Bin Laden está sendo vendido a R$ 3 cada.

Colaboraram: Eliane Lobato, Francisco Alves Filho, Hélio Contreiras e Liana Melo (RJ), Greice Rodrigues e Rita Moraes (SP)

Samba do libertário doido

Algumas horas depois da explosão da bomba na lanchonete McDonald’s, um e-mail enviado às redações sugeria que os autores eram integrantes de uma desconhecida Organização Marxista e de outra não menos anônima Organização Libertária Brasileira. No texto, ambos dizem que o atentado foi feito em prol de reivindicações tão díspares quanto o “fim da intervenção imperialista norte-americana na Colômbia e na Amazônia”, “o fim das pesquisas com fins comerciais sobre alimentos transgênicos” ou “o fim do sistema capitalista e pela implantação do regime socialista mundial”. No final avisam que “todo (sic) e qualquer instituição imperialista é alvo militar” e orientam o “povo brasileiro” a não utilizá-las. As organizações são desconhecidas.

“Entre outras substâncias, a bomba tinha RDX, explosivo exclusivo das Forças Armadas. Nada muito sofisticado, mas o autor do atentado não é nenhum bobo”, diz o delegado Marcos Reimão. De qualquer forma, um analista da área de Inteligência das Forças Armadas afirmou a ISTOÉ que a direita radical pretende tirar proveito da insegurança causada pela crise internacional.

 

O “ barato ” que sai caro
Bombeiros
A cada chamada no 193, duas viaturas especiais são acionadas. Pelo menos um dos soldados veste um traje especial, avaliado em R$ 8 mil, para recolher o material. Após a coleta, a equipe passa por exame clínico e assepsia, comprometendo o dia de trabalho. No Rio Grande do Sul, uma saída, envolvendo 20 pessoas, custa R$ 1,5 mil.
Polícia
As unidades das polícias Civil, Militar e Federal também são acionadas para dar início às investigações sobre a procedência e autoria do suposto atentado. As chamadas sobrecarregam as corporações. Mas a polícia adverte: brincadeira ou trote usando o antraz é crime. O governo decidiu intensificar a punição. Os envolvidos nos trotes serão enquadrados por alarme falso.
Hospitais
Há quatro hospitais para atender casos de contaminação: São Sebastião (RJ); Emílio Ribas (SP); Miguel Couto (BA); e Oswaldo Cruz, com instalações em Pernambuco e no Paraná. Para as suspeitas, cada Estado possui um hospital de referência. O governo tem antibióticos para atender 7.500 pessoas infectadas. Por serem hospitais públicos, a despesa com exames de hemocultura (R$ 10,25) e bacterioscopia (R$ 2,80) é bancada pelo contribuinte.
Aeroportos
Funcionários de terra e da limpeza em aeronaves serão treinados para detectar agentes biológicos. Salas foram montadas para atender aqueles que tenham entrado em contato com substâncias suspeitas. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária disponibilizou 3.600 kits contendo luvas, máscaras, óculos e avental. As bagagens e passageiros estão sendo revistados com mais rigor. O prejuízo por hora parada de uma aeronave chega a US$ 10 mil.
Instituições de análise
Todos os laboratórios de referência no País se mobilizaram para atender as suspeitas. A Fiocruz montou um esquema especial de trabalho, que inclui plantões nos feriados e fins de semana. O Instituto Adolfo Lutz mobilizou especialistas para acompanhar as análises no Instituto Biológico (ligado à Secretaria Estadual da Agricultura). Cartilhas com informações sobre identificação e prevenção da bactéria serão distribuídas à população nos próximos dias.
Correios
A ECT faz vistoria rigorosa em encomendas dirigidas ao Planalto, Congresso, ministérios, embaixadas, consulados e organismos internacionais. Os principais centros de operação já utilizam espectrômetro (que detecta substâncias químicas). Também há detectores de explosivo, metal e raios X de esteira. Serão comprados macacões, luvas e máscaras especiais para Rio, São Paulo, Porto Alegre e Belém.