Desde janeiro, uma sombra paira sobre Buenos Aires, colocando em xeque a credibilidade do governo e da Justiça do país. No dia 19 daquele mês, a mãe do promotor federal Alberto Nisman, Sara Garfunkel, encontrou o filho morto, com um tiro na cabeça, no banheiro de seu apartamento, no bairro turístico de Puerto Madero. Nunca foram encontradas impressões digitais na pistola. O episódio por si só já seria escandaloso, mas é ainda mais grave porque ocorreu poucas horas antes de Nisman depor contra o governo no Congresso argentino. Desde então, as notícias sobre a morte não esclarecida ajudaram a inflamar o discurso contra a presidente Cristina Kirchner. Na semana passada, a quatro meses das eleições presidenciais, o mistério recebeu mais um elemento. Num contraponto à versão oficial, um vídeo gravado pela polícia e divulgado na tevê mostrou total descuido dos peritos em preservar a cena do crime. Ficou a dúvida: a negligência com possíveis provas foi fruto da incompetência ou proposital?

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As imagens expõem falhas no protocolo e destacam a grande quantidade de pessoas que entraram no apartamento de Nisman na madrugada de 19 de janeiro. Estava lá até mesmo o secretário de Segurança Pública, Sergio Berni, que chegou ao local antes de Viviana Fein, promotora responsável pelo caso. Abalada, a mãe da vítima acompanhou todo o trabalho. Muitas pessoas aparecem sem vestimenta adequada (luvas e tocas), sentadas no sofá da sala e passeando pelos cômodos. Há três passagens marcantes no vídeo. Em determinado momento, um perito limpa a arma do crime com papel higiênico e a apoia no bidê junto com as balas. Em outro, os pés de Fein pisam sobre marcas de sangue no chão do banheiro. No último, a promotora Viviana e o secretário Berni conversam e ele sugere que Nisman estaria agonizando. “Vamos primeiro pela vida da pessoa que está ali dentro”, diz Berni. Viviana responde que estava lendo um bilhete que havia sido deixado na cozinha.

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DESPREPARO
Imagens da perícia mostram arma deixada no bidê e pessoas circulando no
local sem roupa adequada. Cristina foi acusada pelo promotor

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Ao vídeo somou-se o resultado de uma perícia no computador pessoal de Nisman publicado pelo jornal oposicionista Clarín. A avaliação técnica mostrou que o aparelho pode ter sido acessado remotamente para trocar as configurações de data e hora e que vários arquivos foram apagados. Por dispositivos USB, como pen drives, mais de 60 acessos também teriam sido registrados no notebook 11 horas depois que o promotor já estava morto – considerando correto o que determinou a autópsia oficial – e duas horas antes de sua mãe encontrá-lo com o tiro na cabeça. O que foi modificado é praticamente impossível de se conhecer. A última busca no Google foi pela palavra “psicodelia”. No celular, foi encontrado um vírus espião que pode ter transmitido informações do promotor para terceiros e conversas por mensagens de texto foram deletadas. Aos olhos da opinião pública, esses indícios são suficientes para descartar a hipótese de suicídio, aventada por Fein desde o início.

Havia muitos motivos para calar Nisman, que temia ser assassinado. Na investigação a que ele se dedicara com exclusividade nos últimos dez anos, o promotor concluía que o ataque à sede da principal associação judaica argentina, Amia, em 1994, fora cometido por terroristas iranianos e que Cristina Kirchner, o chanceler Héctor Timerman e outros funcionários do governo ajudaram a acobertá-los. De acordo com a denúncia, a presidente tinha interesse em fechar acordos comerciais com o Irã. No atentado, a explosão de um carro-bomba deixou 85 mortos e mais de 300 feridos. Pelo teor das investigações, Nisman sofria ameaças e andava com dez seguranças particulares, mas todos eles haviam sido dispensados no dia anterior à sua morte. Para o jornalista Jorge Lanata, que divulgou o vídeo da perícia, Cristina tem medo de ser presa e, por isso, pressiona a Justiça Federal (leia entrevista ao lado). Em maio, a denúncia de Nisman contra a presidente, levada adiante por outros promotores, foi rejeitada pela instância máxima da Justiça. Tantas perguntas sem resposta num caso tão notório levantam dúvidas sobre investigações passadas e até sobre crimes comuns. Segundo a Corte Suprema da Argentina, metade dos homicídios dolosos cometidos em Buenos Aires em 2013 não foi esclarecida. Nisman talvez seja mais um deles.

“O governo quer que esqueçamos da morte de Nisman”

Um dos opositores mais ferrenhos da presidente Cristina Kirchner e autor do livro “A Década Roubada”, o jornalista argentino Jorge Lanata apresenta o programa de tevê “Periodismo para Todos” nas noites de domingo. Na semana passada, ele transmitiu em rede nacional o vídeo obtido junto à polícia.

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Denúncia
O jornalista Jorge Lanata divulgou o vídeo que chocou a Argentina

ISTOÉ – Depois de ver o vídeo da perícia, o que mais lhe impressionou?
Jorge Lanata –
O pior de tudo é como o governo tem lidado com isso. Estou convencido de que há algo muito mais importante por trás dessa morte e que ainda não conhecemos. No meu programa, sugeri que há algum acordo secreto entre Argentina e Irã, talvez na área nuclear. O governo tem interesse em articular para que as pessoas esqueçam da morte de Nisman.

ISTOÉ – A promotora Viviana Fein, responsável pela investigação, disse que é um procedimento comum limpar a arma do crime para checar a numeração, o calibre. O que o sr. pensa disso?
Lanata –
A polícia diz muitas coisas. No domingo, atingimos 20 pontos de audiência e a possibilidade de o público ver com seus próprios olhos é incontestável. Uma imagem vale mais do que mil palavras. O governo pode dizer qualquer coisa, mas se rompeu o mistério acerca da perícia, que foi completamente irregular. O governo disse que editamos o vídeo, mas não posso editar a pistola sendo limpa, nem os pés de Fein em cima do sangue.

ISTOÉ – O sr. está certo de que Nisman foi assassinado?
Lanata –
Ninguém pode acreditar que ele se matou.

ISTOÉ – Nas atuais circunstâncias, é possível ter alguma fé na Justiça argentina?
Lanata –
É muito difícil. Vivemos um momento muito particular. Há anos, o governo vem tentando controlar a Justiça. É cada vez maior o medo de Cristina de ser presa e a pressão que se faz sobre a Justiça Federal é imensa.

Fotos: Reprodução; Eduardo Munoz/REUTERS; Divulgação