Na semana passada, enquanto os ataques aéreos americanos sobre o território afegão aumentavam de intensidade a cada dia, no front doméstico os inimigos faziam progressos. Os terroristas, justificando a sua qualificação, semeavam o terror nos Estados Unidos. Numa campanha de menos de um mês, conseguiram fechar parte do Congresso americano – mandando para casa deputados relutantes em subir nos aviões de carreira – e fizeram vítimas nos maiores veículos de comunicação do país. Ao todo, contaminaram com o Bacillus anthracis comprovadamente cerca de 40 pessoas, com o número subindo a cada momento. Deixaram também expostas as fraturas no corpo do FBI, o departamento federal de investigações do país, que mais uma vez foi surpreendido pela ousadia de terroristas. Para completar, o Bureau ainda jogou combustível na fogueira iniciada pelas tropas contrárias, ao anunciar o perigo eminente de novas investidas poderosas. No entanto, não alertaram quando, como e onde seriam as ofensivas.

Na sexta-feira 19, a usina atômica Three Mile Island – que sofreu um grave acidente em 1979 – entrou em alerta máximo depois de uma denúncia de sabotagem cujo conteúdo não veio a público. A população entrou em pânico e o presidente George W. Bush ficou sem palavras, na primeira entrevista coletiva de seu governo, ao confrontar estas questões. Praticamente, quem respondeu as perguntas – ou pelo menos parte delas – foi a mídia. As manchetes anunciavam um bombardeio, via correio, de armas biológicas. Restava saber quem comandava esta esquadrilha de cartas.

Oportunidade – Este sujeito oculto não era apenas a Al-Qaeda do terrorista Osama Bin Laden. A belicosa extrema direita americana também está na mira do FBI como suspeita de remeter cartas contaminadas ou não. “Mesmo que Osama não seja o único a empregar os correios neste ataque, ele certamente aproveitaria esta oportunidade”, disse a ISTOÉ Jessica Stern, especialista em terrorismo da Universidade de Harvard. “Pouco importa se a Al-Qaeda tem ou não o antraz. Os terroristas aprenderam neste momento que a simples suspeita de contaminação já é suficiente para provocar o terror”, disse.

Em vários países – o Brasil incluído nesta lista –, cartas contendo pó branco começaram a pipocar nas caixas de correspondência. As únicas nações a receber comprovadamente uma remessa da bactéria foram a Argentina (uma carta vinda de Miami) e o Quênia. Neste último país, um médico-empresário abriu uma carta repleta de pó branco e postada na cidade americana de Atlanta. O exame de contaminação dele e de quatro membros de sua família, incluindo esposa e filho, deu positivo. Outros dois endereços – um em Nairóbi e outro na cidade de Nyesi, na região central do território – também serviram como possíveis portadores do mesmo conteúdo assustador. A primeira correspondência chegou a um escritório local da ONU e tinha selos paquistaneses, além de aparência suspeita. A outra tinha como alvo um homem que é informante da polícia. As duas estão sendo testadas nos laboratórios do governo.

Mas se a família queniana teve a má sorte de receber a carta contaminada, os investigadores americanos acabaram ganhando um grande presente. Vários detalhes importantes vieram à luz depois do ataque aos africanos. ISTOÉ recebeu informações de fontes ligadas aos serviços americanos de inteligência de que o médico-empresário queniano, cujo nome não foi revelado por questões de segurança, é um importante colaborador dos americanos e teve participação exemplar durante as investigações sobre a explosão da embaixada dos EUA em Nairóbi, em 1998, um atentado perpetrado por membros da Al-Qaeda. “O empresário é considerado amigo dos Estados Unidos e o outro destinatário é um informante da polícia que colaborou nas investigações do ataque à embaixada. Sabe-se que as duas cartas foram postadas no dia 8 de setembro – portanto, antes dos ataques ao World Trade Center e ao Pentágono. Elas chegaram ao Quênia no dia 9 de outubro, e o empresário abriu seu envelope no dia 11. Em Nyesi, a correspondência só chegou no dia 12. Se ficar comprovado que ambas têm o mesmo tipo de bactéria, isto é, provenientes da mesma matriz, poderemos fazer uma conexão de intenções. Estaremos perto de estabelecer que esses ataques bioterroristas fazem parte de uma estratégia ampla, que envolvia os sequestros de aviões, seus arremessos a alvos em território americano, seguidos de uma campanha de terror via correio”, diz a fonte junto às investigações.

No dia 25 de setembro, Erin O’Connor, 38 anos, a assistente do âncora Tom Brokaw, do jornal da rede de televisão NBC, abriu duas cartas que continham pós estranhos. Dias depois, a moça estava com uma ulceração no peito. Seu médico a colocou sob tratamento com cipro e enviou amostras de sua pele para o Centro de Controle de Doenças de Atlanta. O FBI foi comunicado da suspeita de infecção, mas não levou as investigações adiante. A análise deste material só voltou no dia 12 de outubro, mas comprovou contaminação pelo antraz. Só então o FBI correu para fechar parte da emissora e mandar um batalhão de homens vestidos como astronautas de filme classe B para vasculhar o local. Dias depois, a mesma história se repetiria nas redações das redes de televisão ABC, onde um bebê, filho de uma funcionária, foi contaminado, e na CBS, em que uma produtora do telejornal se contaminou na quarta-feira 18.

Pistas – O exemplo da NBC, porém, é o que oferece mais pistas. Das duas cartas abertas por O’Connor, somente a que fora enviada no dia 18 de setembro, em um posto do correio na cidade de Trenton, do Estado de Nova Jersey, continha a bactéria. Depois se saberia que o esporo desta missiva era do mesmo tipo que matou um funcionário e infectou vários outros na editora da Flórida e também contaminou 31 pessoas no Congresso americano.

Até então, o FBI ainda procurava tratar o ataque com o antraz na empresa jornalística American Media, em Boca Raton, no Estado da Flórida, como um caso isolado. Mas, assim como o chavão que diz não ser possível tapar o sol com a peneira, também não se conseguiu impedir a passagem dos esporos, as pequenas partículas da bactéria. Depois da NBC veio o diário The New York Times. De certo modo, o destinatário não poderia ser outra pessoa senão a repórter Judith Miller, co-autora (com Stephen Engelber e Willian Broad) do recente best-seller Germs, biological weapons and America’s secret war. Miller falou para ISTOÉ de sua surpresa: “Eu estava fazendo uma matéria de economia e, como sempre, punha em dia minha correspondência. No momento em que abri o envelope, um pó fino saltou em meus braços, rosto, peito, colo e pés. ‘Merda!, pensei. Estes filhos da puta me pegaram!’” Imediatamente, o jornal comunicou o fato ao FBI, que, pelo menos desta vez, entrou em ação rapidamente. Novamente, a equipe vestida de astronauta invadia uma redação.

A surpresa maior viria no dia seguinte, quando no escritório do senador democrata Tom Daschle, líder da maioria, um assistente viu voar de um envelope um pó muito fino, que pairou no ar antes de sair voando pela sala. Seria descoberto depois que não só a substância era a bactéria do antraz como pertencia a uma categoria que se imaginava impossível de se obter fora dos laboratórios militares superespecializados dos EUA e da Rússia. “Trata-se de um tipo de desenvolvimento de antraz que apresenta partículas muito pequenas, quase invisíveis, e que flutuam no ar. Deste modo, quando alguém libera o pó, os esporos minúsculos não caem direto no chão, como aqueles esporos mais pesados que foram recolhidos no prédio da Flórida. Esta variante do Senado é a mais perigosa, pois pode ser inalada facilmente, o que provoca efeitos mais devastadores”, diz o subdiretor do Centro de Controle de Doenças, David Fleming.

Para se entender melhor as dificuldades de se obter um tipo de antraz tão refinado, basta lembrar os exemplos dos esforços da seita japonesa Aum Shinrikyo (Verdade Suprema), aquela que liberou gás sarin no metrô de Tóquio. Em 1995, eles tentaram a contaminação em massa da população daquela cidade. A fórmula engendrada para a disseminação consistia em postar vários fiéis no topo de prédios do centro de Tóquio e despejar a bactéria na cabeça dos transeuntes. Não deu certo: os esporos eram muito grandes para a operação e caíram direto no chão sem infectar ninguém.

Iraque – A American Type Culture Collection (ATCC) é uma empresa que comercializava agentes bacteriológicos até 1996, quando o Congresso proibiu estas vendas. Ela vendeu, até a Guerra do Golfo em 1990, exemplares de antraz para o Iraque. Coincidentemente, eram do raríssimo tipo “Ames” encontrado nas cartas-bombas de agora. “Não tenho dúvidas de que atrás destes atentados também se encontram as impressões digitais do Iraque”, diz o ex-diretor da CIA James Woolsey. “O governo apenas não pode admitir isso agora. Caso contrário sofreria grande pressão para bombardear Saddam Hussein, e a frágil aliança com os países muçulmanos seria demolida. Mas no futuro veremos que Bagdá divide muito da culpa por estes ataques”, diz Woolsey.

“Os agentes da Al-Qaeda não lamberam todos os selos destas cartas com antraz”, diz Ted Almay, superintendente do Bureau de Identificação e Investigação do Estado de Ohio. Ele afirma que os radicais islâmicos, mesmo sem pedir, estão recebendo ajuda de terroristas americanos. “No começo deste mês, Richard Butler, líder da organização neonazista Aryan Nation, nomeou o chefe ativista em Ohio, Harold Ray Redfeaim, como seu sucessor. Butler está muito doente e perdeu o quartel-general do grupo em Idaho, depois de um processo judicial. Redfeaim quer mudar a sede da Aryan Nation para Ohio ou Pensilvânia. Mas nem todos na organização concordam com isso. Ele precisava operar uma manobra que o qualificasse aos olhos do grupo”, diz Almay. “Redfeaim teve contato com Larry Wayne Harris, ex-estudante de biologia e química da Universidade de Ohio, que foi preso depois de comprar amostras de germes do botulismo da empresa ATCC”, completa.

Quaisquer que sejam as origens desta praga epistolar, o método encontrado pelo terror não poderia ser mais efetivo. Com 200 bilhões de itens passando anualmente pelo serviço postal americano, as oportunidades de se acertar alvos são enormes. Por isso, os 800 mil funcionários do correio já estão equipados com luvas para lidar com a questão. Aos americanos, porém, restam os números das estatísticas, apontando que é mais fácil morrer de gripe nos EUA – com 20 mil vítimas fatais por ano – do que de antraz, que até agora matou uma pessoa.

Guerra de nervos

Darlene Menconi, de Washington

A bactéria anthracis pode não ser contagiosa, mas o medo se alastra diabolicamente, como um veneno se espalha pelas veias. Depois dos atentados de 11 de setembro, Washington viveu seu momento mais tenso na quarta-feira 17. Num dia típico de outono, com céu azul e ensolarado, a capital acordou preocupada. Desde as sete horas da manhã, autoridades da Casa Branca informavam que as cartas contaminadas enviadas a dois senadores não deveriam ser vistas como mais uma prova de vulnerabilidade. Poucas horas depois, o terror se confirmava e o silêncio de uma cidade ainda em luto era rompido pelas sirenes de carros de bombeiro e de ambulâncias, que corriam em direção ao Capitólio.

Os prédios públicos cerraram suas portas. Do lado de fora, nenhum sinal visível de alarme. Só no meio da tarde veio a resposta: três dezenas de funcionários do Congresso dos EUA foram expostos à bactéria. Aumenta, entre a população, o sentimento de que o governo e o FBI ocultam informações vitais na guerra contra o terrorismo. Nos pontos turísticos mais importantes da cidade, os monumentos opulentos de Washington estavam às moscas, assim como as ruas, os bares e os restaurantes.

A bordo de um ônibus, um grupo de jornalistas que visitava a capital para a abertura de uma exposição de artistas brasileiros no Museu Nacional de Mulheres nas Artes tentava se aproximar do local do incidente. Do grupo de dez profissionais, duas jornalistas – uma delas eu mesma – trouxeram na bagagem uma caixa de ciprofloxacina, medicamento eficaz no tratamento da infecção provocada pelo antraz. Precaução que se mostra cada dia mais fundamentada.