O temor de uma guerra biológica está aumentando nos Estados Unidos. A morte do fotógrafo Bob Stevens, 63 anos, na sexta-feira 5, por causa da bactéria do antraz, e a confirmação na semana passada de que um homem, Ernesto Blanco, 73 anos, e uma mulher de 35 anos estão infectados pelo microorganismo provocaram uma onda de pânico entre os americanos. Stevens, Blanco e a mulher (cujo nome não foi revelado) trabalhavam na editora American Media, de Boca Raton (Flórida). O prédio da empresa foi interditado e o caso está sendo minuciosamente investigado pelo FBI. Isso porque o Bacillus anthracis, causador da infecção, pode ser transformado numa poderosa arma biológica.

Os dois infectados estavam internados e passavam bem até o fechamento desta edição. Eles não chegaram a desenvolver os sintomas da doença (parecidos com os da gripe) e por isso suas chances de recuperação são grandes. O bacilo normalmente ataca animais de pastoreio, como bois e cabras. Os poucos casos de humanos infectados até hoje se restringem a criadores, veterinários e outras pessoas que vivem em contato com esses bichos. Como a última morte registrada nos Estados Unidos aconteceu em 1976, o medo se instalou entre a população. Mais de 800 pessoas já passaram por exames. Algumas estão em tratamento preventivo com antibióticos. Outras tomaram a vacina contra o antraz (leia quadro abaixo). A venda do antibiótico Cipro, do laboratório Bayer, usado no tratamento de infectados, aumentou quase 30% nos últimos dias. Qualquer substância ou envelope estranhos são investigados. Em relação à morte de Stevens, a principal suspeita é que a bactéria tenha chegado à editora por meio de uma carta. Como os nervos dos americanos andam à flor da pele, uma verdadeira operação de guerra foi montada na terça-feira 9 por causa de um líquido jogado por um homem em uma estação do metrô de Washington. Era um produto de limpeza.

O FBI não acha que a contaminação descoberta na American Media seja fruto de um ataque terrorista, já que, em uma ofensiva, mais gente seria contaminada. Há outro dado a considerar. Foram encontradas semelhanças entre a bactéria que vitimou Stevens e uma linhagem fabricada para pesquisa de um laboratório de estudos veterinários, realizada em 1950, em Iowa (EUA). De uma forma ou de outra, o Centro de Controle de Doenças (CDC, em inglês), órgão encarregado de combater enfermidades e prevenir epidemias, pede que os americanos não entrem em pânico. A instituição diz que não há necessidade de a população procurar um médico se não houver sintomas de doença (confira no quadro), mas pediu atenção especial a possíveis problemas respiratórios.

A cautela se justifica. “Pesquisas científicas indicam que 50 gramas da bactéria, que é de fácil produção em laboratório, pode matar até 120 mil pessoas em uma cidade de 500 mil habitantes”, afirma o infectologista Antônio Carlos Pignatari, professor da Universidade Federal de São Paulo. Ele conta que a bactéria é considerada uma boa arma por sua capacidade de entrar nas vias aéreas mais profundas. “Os esporos (um tipo de cápsula) da bactéria são inodoros e invisíveis. Não provocam nem mesmo espirro ou tosse que ajude a expeli-los. Sua entrada no corpo é simples e sua ação certa”, completa.

A bactéria do antraz tem potencial de arma justamente por formar esporos, estrutura desenvolvida por ela quando não tem condições de se reproduzir. Se um animal contaminado morre e não é queimado, o organismo consegue sobreviver. Depois da decomposição do bicho, a bactéria se transforma nessas cápsulas, vivendo por anos. Outra característica do microorganismo é que a temperatura externa não o afeta. Ele poderia, portanto, ser lançado em qualquer lugar do mundo. O professor da disciplina de doenças infecciosas e parasitárias da USP Marcos Boulos diz que, como os sintomas da doença são semelhantes ao da gripe, o diagnóstico fica prejudicado. “Se os sintomas estão instalados e o pulmão já foi tomado, é difícil salvar a pessoa. Os antibióticos têm ótima ação, mas precisam ser usados logo após a inalação da bactéria”, diz. O governo americano, na quarta-feira 10, exigiu que as embaixadas dos EUA tivessem um antibiótico contra a bactéria, que não é transmitida de pessoa para pessoa, mas é disseminada facilmente pelo ar quando está na forma de esporos.

Mesmo com a avalanche de informações que o caso da American Media provocou, o infectologista Carlos Armando de Avila, do Hospital do Servidor Público de São Paulo, garante que tudo o que se fala sobre os poderes do antraz e de seu uso como arma de guerra são apenas suposições. “Não existem muitos pesquisadores especializados na bactéria. O que temos hoje são dados teóricos”, diz. O pesquisador Silvio Valle, coordenador do curso de biossegurança da Fundação Oswaldo Cruz (no Rio), não acredita que o organismo seja utilizado como arma para epidemias de grandes proporções. “É possível que ele seja utilizado em atentados isolados, como parece ocorrer agora nos EUA”, conclui.

Vacina para quem precisa

Os americanos estão tão assustados com o antraz que o Centro de Controle de Doenças (CDC) informa em seu site quem são os candidatos à vacinação. Devem se proteger pesquisadores de laboratórios que lidam com a bactéria, pessoas que trabalham com animais ou peles provenientes de regiões onde o mal existe e militares que atuam em áreas com alto risco de exposição ao organismo. Não é um medicamento de aplicação em massa. “Ele requer muito investimento. Aqui no Brasil já temos competência para produzir a vacina, mas precisaríamos de dois a três anos para tê-la pronta. E seriam necessários dez anos para que ela pudesse entrar legalmente no mercado”, diz Isaías Raw, presidente da Fundação Butantã de São Paulo.

A vacina contra o antraz funciona como as criadas contra outras doenças. Ela consiste na aplicação de uma bactéria inativada (morta). O organismo produz anticorpos para se defender da invasão, tornando o corpo imune ao inimigo. Sua eficácia de proteção, segundo o CDC, é de 93%. O órgão americano recomenda seis doses: três dadas no primeiro mês e mais três divididas entre seis, 12 e 18 meses após a primeira picada. Depois, orienta-se reforço anual. “Existe uma vacina em fase experimental capaz de oferecer proteção com uma dose. Mas ela foi testada só em macacos”, conta o infectologista Carlos Armando de Ávila.

Os tipos da doença

Cutânea – Ocorre por contato da pele com lã, couro ou pêlo de animais contaminados. Forma-se uma lesão local, que, se for tratada de forma adequada, é facilmente curada. É o tipo mais comum da doença e também o menos grave. Apenas 20% dos casos mal tratados levam à morte

• Inalatória – Quando se inalam esporos da bactéria do antraz, eles atingem o pulmão. É fatal na maioria dos casos. Os sintomas iniciais parecem os da gripe, mas logo evoluem para problemas respiratórios e paralisia

• Gastrointestinal – Quando é ingerida carne mal cozida de um animal contaminado. Os principais sintomas são náusea, perda de apetite, vômito de sangue, dor abdominal e forte diarréia. É fatal de 25% a 60% dos casos

Colaboraram: Celina Côrtes e Lena Castellón