Domingo, nove da noite, céu do Afeganistão. Durante as duas horas em que os 50 mísseis Tomahawk viajaram a uma velocidade de 850 km/h para explodir com precisão sobre as instalações de defesa e os postos de comando terroristas, uma constelação de satélites enviava a cada seis milésimos de segundo sinais de rádio para um aparelho receptor embutido nos mísseis. Usando como referência a distância e o tempo que esses sinais levam para chegar à Terra, o receptor calculava a posição geográfica dos mísseis, dos alvos e dos obstáculos, como montanhas e prédios. Os dados eram enviados para o piloto automático, que ganhava agilidade até para virtualmente dobrar esquinas. Na corrida de arremessos, bombardeiros B-2 dispararam toneladas de bombas inteligentes. Ao contrário das armas convencionais, que caem sobre o alvo com o peso da gravidade, essa munição tem acoplado à sua cauda um sistema de navegação comandado por satélite idêntico ao dos mísseis Tomahawk. Funcionando como guia, os sistemas orientados por satélite, ou GPS, dotaram as bombas de autonomia para corrigir rotas e vencer o céu nebuloso com a única missão de acertar a pontaria a até 24 quilômetros de distância. Só não resolvem a desinformação do serviço de inteligência, como a que causou a morte de quatro funcionários da ONU no Afeganistão, na segunda-feira 8.

Os satélites são a mais poderosa munição da guerra encabeçada pelos EUA contra o terrorismo. Não só fornecem um atlas de localização geográfica para mísseis e bombas como também dão suporte a todas as ações militares. Sem eles, seria impossível manter conectadas todas as forças bélicas. Porta-aviões, submarinos e navios só se comunicam porque os satélites que orbitam o espaço trabalham incessantemente como antenas, captando e retransmitindo informações traduzidas por impulsos elétricos (leia quadro à pág. 86). Esses verdadeiros espiões eletrônicos de guerra são lançados ao espaço por foguetes e – para que não caiam de volta na atmosfera – levam em sua carcaça outros pequenos foguetes que fazem a máquina girar em torno do planeta na mesma aceleração da gravidade. Há milhares desses bisbilhoteiros celestes pontuando o espaço, mas como a maioria sobe aos céus silenciosamente, na calada da noite, não há estatísticas oficiais. Pelo menos 50 deles têm o único e exclusivo objetivo de espionar o planeta e trabalham em conjunto para municiar de informações o levante bélico contra o terrorismo. Há veículos russos e europeus, mas a maioria é americana.

Os balões utilizados pela França durante a Revolução Francesa, e as câmeras adaptadas a aviões para missão de reconhecimento nas Filipinas, na Segunda Guerra Mundial – ambos com a tarefa de congelar imagens aéreas para fins militares –, deram lugar a equipamentos sofisticadíssimos. Na noite da sexta-feira 5, foi lançado da base espacial de Vanderberg, na Califórnia, o satélite KH-11, batizado de Keyhole (buraco da fechadura), um dos mais avançados espiões do mundo. “Para que possa captar imagens com precisão, ele foi colocado a uma distância de 300 km da superfície terrestre, o que lhe permite girar em torno do globo em uma hora e meia. Cada vez que sobrevoa os EUA, ele descarrega nos computadores militares as informações que colhe quando passa pelo Afeganistão”, explica o astrônomo Roberto Boczko, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciência Atmosférica.

As informações valem ouro nas mãos do Exército americano. Sensores infravermelhos e ultravioleta são capazes de identificar cores e materiais invisíveis ao olho humano. A tecnologia permitiria, por exemplo, distinguir os tanques da Aliança do Norte, que lutam como aliados contra a milícia do Taleban, dos tanques de papelão eventualmente utilizados pelo inimigo nas emboscadas. Estaria talvez aí a saída para impedir erros grosseiros como os cometidos na guerra do Kosovo, em 1999, em que apenas uma parcela dos alvos foi atingida. Ali, as forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) erraram feio e destruíram hospitais, veículos e pontes de papel. Os mísseis inteligentes acertaram uma ponte por onde passava um trem cheio de civis inocentes. Em outro bombardeio a Belgrado, os mísseis teleguiados alvejaram a Embaixada da China, onde os americanos pensaram que funcionavam instalações de armas iugoslavas.

Para acertar na mira, desta vez, a coalizão internacional contra o terrorismo está preparada para identificar caminhões camuflados com folhagens, por exemplo. Não se precisaria recorrer aos artifícios usados pelos americanos na guerra do Vietnã, quando despejaram o popular agente laranja para derrubar as folhas das árvores e assim enxergar os vietcongues escondidos na floresta.

Fogueiras – Com a nova geração de espiões eletrônicos, hoje seria possível obter imagens de alta qualidade para distinguir se a carga de um comboio é de areia ou de munição e identificar regiões de solo lamacento não indicadas para os soldados marcharem. Os sensores de raios infravermelhos dos satélites também são sensíveis ao calor e permitem a visualização de fogueiras subterrâneas durante a noite. “Se os terroristas mantiverem ligado um único engenho eletrônico dentro de uma caverna, os satélites são capazes de detectar as ondas eletromagnéticas que ele emite, mesmo sob a proteção de espessas paredes”, garante o astrônomo Boczko. “O Keyhole será decisivo para as próximas etapas dessa guerra. Dá à inteligência o cenário do conflito, assim como dos abrigos que podem esconder Bin Laden”, diz o brigadeiro Eden Asvolinsque, ex-assessor da Junta Interamericana de Defesa, em Washington.

Outra tecnologia de vigilância que tem municiado os espiões de informações é o sistema de satélites Echelon, mantido por agências de segurança dos EUA, Grã-Bretanha, Austrália e Canadá. Motivada pelos atentados, a Comissão Judiciária americana agora propõe ampliar a liberdade de ação do Echelon que, na prática, funciona à sombra desde a década de 70. Dezenas de satélites interceptam mensagens trocadas por telefone, telex, fax, rádio e e-mail em todo o globo. O material é enviado a uma rede de computadores com um vasto banco de dados, que discrimina palavras-chave, endereços, números de telefone e estabelece relações entre eles. Em julho de 2000, o Parlamento europeu criou uma comissão para investigar o Echelon com a suspeita de que ele seria um instrumento de espionagem industrial. Depois de um ano de trabalho, veio a conclusão: o Echelon existe, é invasivo, mas não há muito o que fazer. Falta uma legislação para punir e regulamentar o grampo digital.

“Os americanos dispõem da tecnologia mais apurada da face da terra. A sofisticação com certeza faz a diferença. Mesmo assim, não será simples”, profetiza o coordenador de programa Petrônio de Souza, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Esse combate será travado entre a tecnologia e a esperteza de soldados com tradição de guerra, escondidos em cerca de 15 mil cavernas e túneis interligados nas montanhas do Afeganistão. “Se o keyhole pode detectar uma fogueira subterrânea, o inimigo pode acender duas mil ao mesmo tempo. Como os espiões resolveriam isso?”, questiona Souza.