Os especialistas em reprodução humana andam preocupados. Não por acaso. Eles estão elaborando os termos de um projeto de lei, com o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil, seção paulista, para regulamentar a área. Com previsão de ser concluído até o final do ano, o documento não pretende apenas ditar regras, estipulando, por exemplo, quantos embriões podem ser colocados no útero da mulher que deseja engravidar. A idéia principal é "proteger" os médicos de situações delicadas pelas quais os pacientes os fazem passar. Muitas delas ultrapassam o limite da ética. "Nós estamos perdidos. Algumas vezes enfrentamos problemas com os quais não sabemos lidar", revela Edson Borges, presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana, em São Paulo (leia algumas histórias abaixo).

Um caso comum é a mulher falsificar a assinatura do marido, necessária para todos os tratamentos. Ela finge que o parceiro concordou em ter um filho por meio de reprodução artificial. "O pior é que ela só conta a verdade depois. E se ele descobre e resolve processar os médicos por tentarem ajudar a paciente?", preocupa-se o médico Paulo Serafini, da clínica paulistana Huntington. De acordo com a norma do Conselho Federal de Medicina (CFM), única regulamentação do setor, toda mulher casada ou com união estável deve ter a permissão do parceiro para receber a técnica. "É por isso que precisamos de uma lei. Ela irá resguardar juridicamente os médicos de situações delicadas, puni-los se fizerem algo de errado e defender os direitos dos pacientes", justifica Rui Alberto Ferriani, presidente da Comissão Nacional de Fertilização Assistida da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia.

Outra questão que os especialistas querem resolver com o projeto é assegurar ou não o acesso de homossexuais a tratamentos de reprodução artificial. O CFM não toca nesse ponto. A maioria dos médicos ouvidos por ISTOÉ aprova a liberação. No caso de parceria masculina, a criança poderia ser gerada por uma amiga. "Acho perfeitamente possível homossexuais terem seus bebês. Pesquisas mostram que as crianças têm desenvolvimento normal", afirma a ginecologista Silvana Chedid, diretora do Centro de Reprodução Humana do Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo.

O especialista Borges levanta outro tema intrigante: o descarte de embriões, prática proibida no Brasil. "Há casais que se separam e pedem para eu jogar fora os embriões congelados que restaram do tratamento", diz o médico. E ocorrem situações ainda mais constrangedoras. Borges lembra-se da história de um casal que tentava a todo custo ter filhos. Quando o médico estava para colocar três embriões no útero da mulher, o marido desistiu do processo ao descobrir que o trio seria composto de meninas. "O pai disse que queria ter um menino. Perguntei o que deveria fazer com os embriões e ele pediu para descartá-los. Não fiz isso. Já imaginou se tempos depois ele desiste da idéia e decide me punir?", questiona. E há casos também de pacientes que fazem aborto quando descobrem que estão grávidas de mais de uma criança (é comum três embriões serem implantados; às vezes, todos vingam).

Apesar de concordarem com a necessidade de uma regra para controlar a área de reprodução assistida, vários médicos admitiram a ISTOÉ que em determinadas situações é preciso burlar as regras do CFM. A atitude é um paradoxo, principalmente partindo de uma classe que defende a criação de uma lei. Mas eles garantem que a negligência é cometida a pedido dos pacientes.

Enquanto esse imbróglio não se resolve, o advogado Renato de Paulo Magri, da OAB-SP, orienta os médicos a pedir que a consulta seja acompanhada pelo marido e que o termo de consentimento seja assinado pelo casal perante o especialista. Assim, o tratamento será feito sem problemas. De acordo com ele, as regras em vigor precisam ser seguidas à risca. "Afinal, é importante saber o limiar entre o correto e o extravagante, já que não dá para negar o avanço da ciência", conclui.

Nos bastidores dos consultórios

Eu e minha mulher decidimos ter o segundo filho. Na segunda tentativa do tratamento, há quatro meses, foram colocados quatro embriões no útero dela. Todos vingaram e ela engravidou de quadrigêmeos. Eu não queria ter todos e optamos pelo aborto (ou redução embrionária). Por que não posso escolher quantas crianças desejo? Minha mulher concordou com a decisão, mas ficou nervosa. O fato de retirar um bebê a abalou emocionalmente. Na data que marcamos para ser feita a primeira redução, ela perdeu uma criança. Remarcamos o dia e ela abortou o segundo. Então, depois de muita discussão, decidimos ter os gêmeos. Em nenhum momento me arrependo da decisão tomada. Se fosse necessário, faria mesmo a redução. Se não conseguisse no Brasil, iria para o Exterior."

João Pereira Gonçalves, 34 anos, empresário

"Tenho uma filha de oito anos. Nos últimos tempos resolvi que gostaria de ter outra criança. Infelizmente, meu marido sempre relutou. Quando tocava no assunto, ele começava a questionar uma série de coisas. Perguntava se me amava de verdade ou não. Ficava transtornada com a situação. No início deste ano, decidi que iria engravidar de qualquer jeito. Fui ao médico e perguntei se eu poderia engravidar com o sêmen de um doador (retirado de um banco de sêmen). Ele disse que eu precisava da autorização do meu marido pelo fato de ser casada. Mas meu parceiro se negou a dá-la. Consultei outro especialista e ele afirmou que não havia problema. Só que aconteceu o inesperado. O médico conseguiu convencer meu marido a doar seu sêmen. Fiquei surpresa. Estou rezando para dar tudo certo."

Vitória Campos, 40 anos, ex-bancária

"Um médico me contou uma situação delicada. Uma paciente foi à clínica desse colega porque queria ter um bebê. Como o marido era muito ocupado, a paciente perguntou ao médico se poderia trazer o sêmen de casa. Ele permitiu, desde que ela trouxesse um consentimento assinado pelo parceiro. Depois, já grávida, ela confessou ao especialista que o marido não podia saber de nada. Ele acreditava que a mulher tinha engravidado naturalmente. A paciente mentiu porque seu marido não queria filhos. Ela inventou que estava com uma infecção vaginal e precisava colher o esperma a pedido do médico dela. Assim dava para verificar quem poderia estar transmitindo o problema."

Paulo Serafim, especialista em produção humana