É no balcão dos açougues de Buenos Aires que alguns dos principais indicadores econômicos do país perdem qualquer utilidade para a população. A crise do país atingiu em cheio o prato sempre farto dos argentinos. Uma consulta realizada pelo diário Clarin a vários açougues da capital constatou que as pessoas estão comprando menos da metade do que compravam há cinco anos – e comprando pior. O delicioso lomo (filé mignon) está sendo substituído pelo bife de alcatra, que custa a metade do preço, ou ainda pelo singelo picadinho, que, misturado a algum legume, rende que é uma beleza. “A carne argentina é tão boa que a alcatra deles é igual ao nosso filé”, diz o gourmet Istvan Wessell, dono da rede que leva seu sobrenome e é sinônimo de alta qualidade em carnes.

Para os argentinos, porém, é mais um sofrimento imposto pelo agravamento da crise que, cada vez mais, é personificada no outrora poderoso Domingo Cavallo, o ministro da Economia. Nos anos 80, o consumo médio de carne por habitante/ano era de 100 quilos. Hoje é de 55/60. Nomeado em 20 de março com honras de salvador da pátria – por sua atuação discutível como ministro da Economia de 1991 a 1996, no governo de Carlos Menem –, a popularidade de Cavallo desliza como se estivesse numa ribanceira. Pesquisa feita pela empresa de consultoria Ricardo Rouvier, divulgada em 1º de outubro, constata que 50,5% dos argentinos querem a queda de Cavallo simplesmente porque ele não conseguiu reativar o crescimento. Ao contrário, a crise recessiva se agravou, abrindo caminho para a possibilidade de uma moratória negociada. Sem nenhuma cerimônia, políticos do governo e da oposição querem que o ministro seja substituído depois das eleições legislativas do próximo dia 14, domingo.

Os argentinos, não fosse o futebol do jovem Ortega, do River Plate e da vigorosa seleção, só teriam motivos para reclamar da vida, atribuindo a culpa ao ministro. Em setembro, houve um crescimento de 43,4% nas demissões em relação a agosto e 818,6% de aumento nas suspensões de trabalhos temporários. Os supermercados estão mais vazios, com queda de faturamento, apesar dos preços em declínio. O número de novos veículos licenciados em setembro foi 48,3% menor do que há 12 meses e 28,4% abaixo do que se registrou no mesmo mês em 2000, reforçando a expectativa do setor de que este será o pior ano de uma década para a venda de automóveis.

Risco – Tudo isso espanta – quem não tem dinheiro e quem tem muito dinheiro. Entre janeiro e agosto de 2001, as empresas privadas estrangeiras investiram no país US$ 6,097 bilhões, 45% a menos do que no mesmo período de 2000, segundo estudo da Fundación Investir, baseado nos planos de investimento anunciados pelas empresas. A queda aconteceu porque os investidores tremem diante da taxa de risco-país, índice que mede a sobretaxa (em relação ao que pagam os Estados Unidos) paga pelo país ao tomar empréstimos. Quanto mais alta, pior. E a da Argentina, nos últimos três anos, subiu de 650 para o recorde de 1.757 pontos (o que significa que a sobretaxa é de 17,57%) na quarta-feira 3, dia em que o índice Merval, que acompanha as principais ações da Bolsa de Valores de Buenos Aires, caiu 7%. Na quinta-feira 4, mais um recorde negativo: a taxa de risco, medida pelo J.P. Morgan, avançou para 1.804. Na sexta-feira, atingiu 1.922, aproximando a Argentina da Nigéria (2.114), a mais alta do mundo. De acordo com analistas, em razão da persistência dos rumores da queda do ministro Cavallo e da possibilidade de o presidente De la Rúa perder sua base de apoio nas eleições que vão renovar todo o Senado e metade da Câmara dos Deputados. O presidente voltou a descartar a saída do ministro e a negar os boatos de desvalorização do peso, que ganharam força nos últimos dias. Mas também De la Rúa já não dispõe de confiabilidade para tranquilizar a população. Um em cada quatro habitantes de Buenos Aires assegurou que votará em branco ou anulará seu voto nas eleições de domingo, segundo uma pesquisa do Gallup. Os argentinos, não sem razão, estão desconfiados da classe política.

A situação do ministro Cavallo ficou mais complicada ainda depois da divulgação, terça-feira 2, de que a arrecadação de setembro caiu 14%, o que ameaça o compromisso imposto pelo FMI de déficit zero em troca de financiamento de US$ 8 bilhões ao país, aprovado em agosto. Déficit zero, para alguns analistas, é uma miragem de Cavallo, um exercício de austeridade fiscal – o que, na prática, são cortes e mais cortes, uma ginástica que sempre acaba levando a população ao empobrecimento. “O corte se fará em alguns gastos de consumo da administração central, e não aprofundará o que já foi feito, de 13%, sobre os salários dos funcionários públicos e aposentados que recebem acima de 500 pesos”, disse o secretário de Receitas Públicas, José Maria Farré. De acordo com consultorias privadas, o déficit é de US$ 2 bilhões. Diante desses resultados, o futuro de Cavallo no governo é uma interrogação que pode chegar a uma resposta depois das eleições. “Milagres” – escreveu o bem-humorado Página12, o mais crítico diário da Argentina – “só existem para o Racing, não para Cavallo”. O Racing é aquele time de futebol popular que desde 1967 não é campeão e, neste ano, surpreende ao liderar o campeonato argentino.