Todo ano é a mesma coisa. Correr de loja em loja para escolher o presente do filho na semana do Dia das Crianças já virou rotina. Instigada por propagandas televisivas e pelo arsenal multicolorido dos colegas de escola, a garotada pede de tudo. Cartuchos de videogame, patinetes e monstrengos japoneses com nomes tão estranhos quanto Pokémon e Digimón fazem a festa dos lojistas. Parece até que brinquedos cada vez mais incrementados e caros são indispensáveis para a felicidade dos pimpolhos, como se eles já não soubessem inventar suas próprias brincadeiras e sentir prazer nas criações simples do dia-a-dia.

A maioria das crianças de classe média das grandes cidades parece perdida sem o arsenal lúdico-tecnológico exposto nas prateleiras e ainda mais cobiçado quando o dia 12 de outubro se aproxima. Brincadeira virou sinônimo de brinquedo, como se jogos e atividades ao ar livre não fossem opções atraentes de entretenimento. Sem eles, é difícil arrumar alguma coisa para fazer, principalmente quando o pai, a mãe, a babá, a professora ou um monitor não estão do lado para dizer do que brincar. “Antigamente, brincávamos na rua e os mais novos aprendiam imitando os mais velhos. Os jogos e brincadeiras iam passando de geração para geração. Hoje, a garotada tem pouca autonomia e um repertório pequeno para colocar em prática”, analisa a pedagoga Maria Ângela Barbato Carneiro, da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Uma das causas dessa falta de autonomia, ressalta ela, é a superproteção e o cerceamento de que os filhos são alvo. “Os condomínios são limitados. A vida da criança é cheia de ‘não pode’. Não pode mexer no jardim, não pode fazer barulho. Mesmo para quem mora em casa, a situação não é diferente”, completa ela.

Repertório – Os irmãos Felipe, nove anos, e Eduardo Zaidan, sete, sabem o que é isso. Sempre viveram em apartamento. No prédio, um cimentado cobre todo o pátio. Esperto, Felipe desafia o terreno inóspito. Usando um colete laranja e um capacete de policial, de walkie-talkie em punho, brinca de espião (ou dedo-duro, como classifica Eduardo). “Vigio todos, principalmente meu irmão, e conto tudo para minha mãe, que fica lá no apartamento com o outro walkie-talkie”, explica. Sempre com o game boy na mão, Eduardo não dá motivos para essa vigilância tão acirrada. Em casa ou no pátio do prédio, ele só abre a boca para contar suas heróicas e virtuais vitórias com o parceiro eletrônico. “É difícil tirar o joguinho da mão dele. Quando ele traz o game boy para o pátio, despreza qualquer outra brincadeira”, confessa a mãe, Ana Maria. Um bom exemplo da falta de repertório pode ser observado nas festas de aniversário. Os bufês infantis não fazem tanto sucesso com cinderelas e príncipes à toa. Poucos são os pais que, cautelosos, não apelam também para as piscinas de bolinhas, as máquinas de fliperama, entre muitos outros recursos, para mobilizar a atenção da criançada. E, claro, não dispensam os monitores para dirigir a brincadeira.

Mas ainda há flagrantes de espontaneidade na periferia e fora dos grandes centros. As crianças preservam a capacidade de transformar um cabo de vassoura em cavalo e qualquer árvore pode inspirar uma aventura na selva. É o caso do menino Davi Silva Oliveira, 11 anos, para quem um cajueiro pode ser tudo o que a imaginação mandar. É lá, em uma praça da periferia de Fortaleza, no Ceará, o ponto de encontro com os amigos após as aulas no Colégio Batista Independente. “Aqui a gente brinca de tudo. Posso ser o Tarzan. Quer ver?”, convida. Sorte que uma mãe zelosa não está por perto para ver o menino saltitando, de galho em galho, até o topo. No final da escalada, um pequeno tesouro: um suculento caju. Na lista de diversões de garotos como Davi não faltam pião, bola de capotão e “peladas” improvisadas no fundo do quintal.

Hora marcada – Diante desse quadro, não é difícil imaginar o que vem acontecendo com as crianças. A agitação e a violência dos grandes centros tornaram a rua proibitiva e brincar virou um programa para o qual é preciso marcar hora e contar com a companhia de um adulto. Tanto para ir ao parquinho quanto à praça ou à praia, a presença de um responsável é imprescindível. Mesmo em metrópoles com amplas áreas de lazer, como o Rio de Janeiro, cercado por praias e florestas, os pais não fogem à regra. Acompanham as crianças ao calçadão ou às escolinhas de esportes que funcionam na orla. Andrea Scheffer Rezende, mãe de Monique, três anos, e Derek, cinco, é frequentadora assídua de Ipanema. “Trabalho meio expediente e vivo correndo para dar a meus filhos a chance de brincar mais livremente. No prédio não tem playground. Então levo Derek para jogar futebol na praia”, conta ela. Monique, a caçula, costuma passar a tarde no parquinho com a avó. “Quero colocá-la na natação. Como não dá para deixá-los soltos por aí, tento agendar atividades”, conclui.