O comerciante Ming está há dez anos no Brasil. Seis deles como empregado em diversas atividades no centro de São Paulo, outros três como dono de uma loja de artigos importados no bairro da Liberdade e os dois últimos como vítima de extorsões praticadas pela chamada máfia chinesa que atua no local. Reservado, Ming (nome fictício) não domina o português. Mas é capaz de contar que, desde 1999, duas pessoas vêm exigindo dinheiro para "proteger" sua família. Evita sair de casa à noite e assusta-se quando alguém que não seja a esposa ou a filha liga no seu celular. "Medo de morrer também", diz, fazendo uma alusão ao brutal assassinato de um casal de chineses na madrugada do sábado 29. Capangas de um poderoso chefão ou apenas membros de pequenas organizações isoladas, a verdade é que há grupos de criminosos apavorando a comunidade chinesa na região central da capital. A tortura sofrida por Zhang Jin Lin, 53 anos, e Huang Li Fen, 50, e o fato de serem comerciantes de importados levam o Ministério Público a trabalhar com a hipótese de ação mafiosa. Chineses com o perfil de Ming e do casal assassinado são os principais alvos. Em um ano, o número de casos de extorsão já passou de 20. Além disso, o promotor Roberto Porto, do Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público, apura a iminência de a máfia chinesa começar uma guerra pelo controle das áreas que distribuem o contrabando de mercadorias, CDs e DVDs piratas. Quem desobedece a lei do crime, morre.

Feira livre – A região central de São Paulo é de longe um dos terrenos mais tentadores para a atuação desses grupos. Quatro dos dez principais pontos- de-venda de mercadorias piratas do País estão lá. Os CDs trazidos da China via Paraguai, por exemplo, são vendidos na proporção de um para dois em relação ao produto original. Fora a violência, a entrada de mercadorias ilegais responde ainda pelo prejuízo econômico do centro paulista. Os japoneses na Liberdade, os italianos no Brás, os judeus no Bom Retiro e os árabes na Rua 25 de Março hoje são exceções. "Os comerciantes tradicionais estão migrando para o interior. Os que ficam encontram-se numa situação complicada", lamenta o presidente da Associação Comercial de São Paulo, Alencar Burti.

O promotor Roberto Porto vai além. Para ele, o fenômeno de comerciantes que, ameaçados, têm de se submeter à máfia chinesa pode levar a uma disputa comparada às dos pontos do tráfico no Rio. "É uma situação pior", acrescenta ele. Diferentemente dos traficantes, a máfia se comunica num idioma dificílimo, adota castigos brutais, impõe um pacto de silêncio e mantém sob domínio uma comunidade que abriga estrangeiros em situação ilegal ou donos de mercadorias contrabandeadas – o que aumenta o medo de alguns chineses de procurar a polícia. O comerciante Ming, por exemplo, nunca recorreu às autoridades e pouco comenta suas ameaças. Das extorsões sofridas, fez alguns pagamentos, mas não fala quantos ou mesmo como foram. Para o cônsul-geral adjunto da China, Lee Chun Hua, isso ocorre, pois alguns comerciantes acreditam que a denúncia não resolverá sua situação. "Apesar disso, nós orientamos todos a procurar as autoridades brasileiras", afirma ele. Os chineses representam a décima colônia de estrangeiros no Brasil, com 21.130 imigrantes oficiais, estando 90% em São Paulo. O número de ilegais é inestimado.

O Ministério Público obtém da própria comunidade chinesa as denúncias sobre a máfia. Mesmo com os informantes, os promotores têm de driblar a dificuldade da língua convocando tradutores para os depoimentos. Numa das denúncias, um chinês proprietário de uma avícola na região central levou ao Gaeco os bilhetes com ameaças. No entanto, à exceção do número do celular descrito no papel, sobraram ideogramas indecifráveis na leitura ocidental. Foi preciso recorrer ao intérprete. Também com a ajuda de uma vítima, em janeiro deste ano, a polícia apreendeu num apartamento na avenida Paulista 15 passaportes de chineses e carimbos falsos das embaixadas do Paraguai e da Argentina.

Fronteira – As apreensões confirmam a tese de que os chineses ilegais entram no Brasil principalmente pelo Paraguai. São recrutados por escritórios no país de origem, que distribuem vistos falsos para a permanência no Brasil. A maioria são jovens vindos de Cantão (sul da China), com idade entre 18 e 25 anos e escolaridade equivalente ao primeiro grau. Segundo o Gaeco, cada uma dessas viagens custa ao agenciador US$ 10 mil – quantia paga pelo imigrante ilegal com o trabalho escravo e até com a obrigação de ameaçar comerciantes da colônia. Uma extorsão varia de R$ 2 mil a R$ 10 mil e ocorre sem periodicidade definida. A Polícia Federal assume a dificuldade em combater a entrada ilegal "devido à dimensão territorial, ao fato de eles se confundirem com a população e pouco circular em áreas fiscalizadas".

A falta de integração das polícias civil, militar e federal também atrapalha as investigações da presença de uma máfia de chineses. No distrito policial do centro de São Paulo, a informação é de que as mortes e as extorsões na comunidade são casos isolados. O juiz criminal Walter Fanganiello Maierovitch, presidente do Instituto Giovanni Falcone, acredita que se tratam de organizações pré-mafiosas, pois, apesar de utilizarem métodos violentos, não há uma liderança internacional unificada. "Seja o que for, esses grupos não podem receber as mesmas penas que qualquer batedor de carteira", acrescenta. Apesar de atrativo a essas organizações, o Brasil ainda carece de uma legislação para diferenciar uma quadrilha dos grupos como o dos chineses em São Paulo.