O joguinho parece inofensivo, daqueles nos quais se aposta mais como passatempo do que como atalho para a fortuna. Basta ter à mão uma moeda de 25 centavos, escolher entre as bandeiras de oito países, apertar um botão e torcer. Os raros sortudos podem ganhar até R$ 1 mil. São os caça-níqueis: máquinas espalhadas por vários bares da periferia ou do interior e pelas casas de bingo de todo o País. Por trás da jogatina aparentemente inocente, está uma rede de contraventores que há muitas décadas dá trabalho à polícia: os banqueiros do jogo do bicho. Com a derrocada do seu negócio original, ao perder público para as loterias oficiais, os bicheiros passaram a investir nesse ramo de contravenção. Enquanto integrantes do Ministério Público Federal não têm dúvida de que os caça-níqueis são ilegais, os contraventores procuram brechas na lei para manter a atividade. Estendem seus tentáculos no velho estilo, demarcam territórios na base da intimidação e por eles matam e morrem. No Rio, numa disputa pelo controle das máquinas na zona oeste, antigo reduto do capo Castor de Andrade, duas pessoas foram assassinadas em um mês. Alguns contraventores são acusados de parceria com a Máfia italiana para explorar os caça-níqueis e outros são suspeitos de lavar dinheiro por intermédio de empresas-fantasmas uruguaias, como mostram documentos aos quais ISTOÉ teve acesso.

A violência que sustenta o negócio veio à tona há dois meses, quando estourou a guerra entre dois sucessores de Castor. Pouco antes de morrer, em 1997, o chefão da contravenção carioca dividiu seu espólio em duas partes: o sobrinho Rogério Andrade tomaria conta do jogo do bicho, enquanto o genro Fernando Ignácio ficaria com os caça-níqueis. Com a queda do faturamento do jogo do bicho, Rogério resolveu explorar também as maquininhas. Aí é que a guerra começou. Mais de 400 máquinas foram destruídas em confrontos entre os seguranças dos dois grupos. Em 20 de agosto, o detetive aposentado Everaldo Jesus Silva, apontado como segurança de um dos depósitos de máquinas de Rogério, foi morto a tiros. O troco veio um mês depois. Em 21 de setembro, Sérgio Maciel de Carvalho, irmão de Silvio Maciel, advogado da empresa de Fernando Ignácio, foi assassinado também a tiros. “O mandante do crime foi Rogério Andrade e o alvo era eu. Meu irmão foi morto por engano”, acusou o advogado. A polícia e o Ministério Público estadual investigam os casos.

Fortaleza – O grupo de Rogério Andrade atua sob a fachada da empresa West Rio Games, e a turma de Fernando Ignácio tem a Adult Games, que funciona na antiga fortaleza da Castor de Andrade, no bairro do Bangu. No endereço, a polícia carioca apreendeu mais de mil máquinas de caça-níqueis, que acabaram sendo devolvidas por decisão da Justiça carioca. O juiz se baseou em um laudo pericial para considerar legal o jogo. O documento vai de encontro a outros laudos segundo os quais essas máquinas servem a um jogo de azar. A empresa de Fernando Ignácio foi o primeiro alvo da polícia. O nome do bicheiro não consta do contrato social da Adult Games, mas a polícia garante que ele é o verdadeiro dono. Nas investigações, descobriu-se que 99% do capital da Adult pertence à empresa uruguaia Rhondda Sociedad Anonima. No endereço da Rhondda que consta no contrato social conseguido por ISTOÉ – Calle Juncal, unidad 2201 –, funciona na verdade o escritório de advocacia Posadas, Posadas y Vecino, em Montevidéu, especializado em criar empresas de fachada. O estabelecimento – que tem como um dos proprietários o ex-ministro da Economia do Uruguai Ignacio Posadas – foi rota para a turma de Fernando Collor de Mello viabilizar a Operação Uruguai, que rendeu US$ 5 milhões, e também para Carlito Menem, filho do ex-presidente argentino, no caso do recebimento de comissões milionárias por venda de armas. O escritório foi investigado pela Drug Enforcement Agency (DEA), dos Estados Unidos, por suspeita de lavagem de dinheiro do tráfico internacional de drogas.

Águia – O advogado Silvio Maciel não quis comentar a ligação da Adult Games com a empresa uruguaia. Preferiu atacar o grupo rival. “Não é verdade que a Adult tenha relação com qualquer contraventor. A outra empresa, West Rio, é que é comandada por um bicheiro, o Rogério Andrade”, acusa. “As máquinas deles tinham, inclusive, o desenho de uma águia (símbolo da contravenção) e a sigla BB, de banca do bicho.” Maciel acusa a polícia de perseguir a sua empresa para favorecer a Adult Games. “Não é verdadeira essa acusação”, rebate o subsecretário estadual de Segurança do Rio, tenente-coronel PM Lenine de Freitas. Foi ele quem comandou pessoalmente a operação de apreensão das máquinas. “Fomos atrás de todas as denúncias que recebemos contra os dois grupos.” Mesmo que não seja por causa dos caça-níqueis , Rogério Andrade estará em breve prestando contas à Justiça. Ele é acusado de ser o mandante do assassinato de seu primo Paulinho Andrade, filho de Castor, ocorrido em 1998. A acusação é feita pelo ex-PM Jadir Duarte, que a polícia identifica como o autor dos disparos contra Paulinho. A nova escalada de mortes que começou há dois meses não deve parar por aí, mas a polícia alega que está de mãos amarradas. “Segundo a Justiça do Rio, esse jogo é legal. Sendo assim, não temos como reprimir os grupos que exploram os caça-níqueis”, lamenta o chefe de Polícia do Rio, delegado Álvaro Lins.

Velhas regras – A estréia dos bicheiros nesse novo negócio aconteceu há cerca de três anos, quando o movimento do jogo do bicho começou a cair. Antes, os caça-níqueis eram instalados nos bares por comerciantes ou policiais que pagavam um aluguel para que os chefões tolerassem esse tipo de jogatina no território dedicado ao bicho. Em pouco tempo, os bicheiros destituíram os antigos donos, comprando deles as maquininhas. “Foi uma espécie de desapropriação forçada, patrocinada pelos contraventores”, explica o delegado Lins. As regras são as mesmas de antigamente: os 15 chefões dividiram o Rio de Janeiro em territórios, e quem explorar alguma contravenção nesses locais sem a autorização deles corre sério risco de vida. As máquinas se multiplicam, e há tantos aficionados nesse tipo de jogo que os bicheiros já encontram dificuldades para abastecer com moedas de R$ 0,25 os comerciantes que exploram os caça-níqueis. “Alguns trocadores de ônibus estão vendendo essas moedas com ágio de dois ou três centavos”, conta o chefe de Polícia Civil do Rio.

A exploração dos caça-níqueis está longe de ser um problema exclusivo dos cariocas. As máquinas estão espalhadas por todo o País, muitas delas dentro de bingos, e dão bastante trabalho às autoridades. No Distrito Federal, o principal inimigo dessa atividade é o procurador da República, Luiz Francisco de Souza, que não tem dúvidas de que o jogo é inconstitucional. “Trata-se de uma aposta em que o resultado vem de fatores aleatórios. É jogo de azar”, afirma. “Além disso, o dono das máquinas pode aumentar ou diminuir as probabilidades de ganhar de acordo com a sua vontade.” Com o argumento, o procurador conseguiu proibir a exploração dessas máquinas no Distrito Federal. Ele explica que, quando os caça-níqueis estão funcionando dentro dos bingos, o assunto é federal. Quando a jogatina acontece em bares e padarias, é responsabilidade das autoridades estaduais.

“Os governos federal e estaduais e o procurador-geral, Geraldo Brindeiro, devem ser responsabilizados por não arguirem a constitucionalidade dos caça-níqueis”, afirma Luiz Francisco. Sua intimidade com o assunto nasceu da investigação sobre o envolvimento do ex-ministro Rafael Greca com bingos e caça-níqueis. O ministro acabou caindo. Nessa ação, o procurador cita uma Carta Rogatória do Ministério Público italiano que acusa o chefão do jogo do bicho paulista, Ivo Noal, de associação com a Máfia para explorar as máquinas dentro dos bingos de São Paulo.

Truculência – No Espírito Santo, o acusado de explorar o ramo é o deputado José Carlos Gratz (PFL). No Rio Grande do Sul, o governador Olívio Dutra (PT) é muito criticado por permitir o funcionamento das máquinas. O assunto está sendo dissecado numa CPI da Assembléia Legislativa gaúcha. “O governo estadual instituiu a jogatina por decreto”, reclama Jair Krische, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos. Em Minas Gerais, o procurador-geral de Justiça do Estado, Márcio Decat de Moura, perdeu o cargo no ano passado após a divulgação de fitas em que seu genro pedia propina pelo telefone a um dos exploradores de caça-níqueis. De maneira geral, atos de corrupção como este são usados como garantia para o funcionamento da engrenagem, que gera lucros polpudos. “Essa é uma atividade sem nenhuma utilidade social, que não rende empregos e apenas enriquece alguns privilegiados”, define Luiz Francisco. Como se não bastasse, serve também para alimentar crimes e assassinatos, como se vê na guerra em curso no Rio de Janeiro. Nada de novo, apenas os bicheiros praticando o seu conhecido estilo truculento de fazer contravenção, sob as vistas complacentes ou impotentes das autoridades.