Nenhum vampiro havia saído da literatura para se materializar no cinema até o diretor expressionista alemão Friedrich Wilhem Murnau (1888-1931) resolver filmar o clássico Drácula, de Bram Stoker. Acontece que a família do escritor negou os direitos de filmagem, forçando Murnau a mudar o nome da fita para Nosferatu. Lançado em 1922, o admirável filme que se tornaria um clássico do cinema mudo e seria a obra premonitória do surgimento de Hitler teve seus negativos originais destruídos. Só 50 anos depois é que uma cópia restaurada veio resgatar sua importância. A história encantou o diretor nova-iorquino E. Elias Merhige – mais conhecido por seus trabalhos com videoclipes –, que criou um enredo amalucado e bem divertido para contar os bastidores da produção de Nosferatu em A sombra do vampiro (Shadow of vampire, Estados Unidos, 2000), em cartaz na sexta-feira 12 no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e Porto Alegre. A estréia em São Paulo está prevista para 16 de novembro.

No circo de caninos imaginado pelo diretor americano, Murnau – papel do sempre surpreendente John Malkovich – é um obcecado pela sua arte. Quer o melhor e para tal não mede esforços em gastar dinheiro, chicotear a equipe com seu charme pérfido e assim trazer para as telas o máximo de realismo. As filmagens já estão em curso com a estrela Greta Schroeder (Catherine McCormack) dando seus chiliques e o produtor Albin Grau (Udo Kier) arrancando os cabelos porque Murnau ainda não apresentou o ator principal. Olímpico, Murnau diz que seu Nosferatu – transformado em conde Orlock e não em conde Drácula, por causa dos direitos autorais – será interpretado por Max Schreck, um ator formado pelo método Stanislavski de teatro, ou seja, o tipo que mergulha totalmente no papel com a intenção de trazer toda a verdade do personagem à tona. Para respeitar as vontades de Schreck – nome verdadeiro do ator do filme de 1922 –, as cenas devem ser rodadas somente à noite, com ele já maquiado e imerso no papel.

Algo de estranho está acontecendo. Todos sentem calafrios diante da presença de Schreck, magistralmente interpretado por Willem Dafoe. Afinal, é Stanislavski demais não tirar as orelhas pontudas, as unhas tão grandes quanto as do Zé do Caixão, não se misturar com o resto da equipe e, de repente, catar um morcego em pleno vôo para sugar-lhe o sangue como quem sorve o final de um picolé. É isso mesmo, Schreck é um vampiro de verdade, um mercenário do sangue, que trocou seu trabalho no filme em troca de várias jugulares. “Se você quiser comer o autor, seja meu convidado”, ironiza Murnau, já furioso com a impaciência do ser noturno. Entre um e outro corte alternando o colorido da história contada por Merhige com o branco-e-preto do filme dentro do filme, dão-se boas risadas. Principalmente com as tiradas de Dafoe, que deixa a verdadeira impressão de ser exatamente daquele jeito. “Eu vivi uma transformação física concreta. Quando me olhava no espelho, a idéia de mim mesmo havia desaparecido e sobrava apenas Max Schreck”, conta Dafoe. É verdade. Para quem assistiu à fita muda, tem-se a impressão de que o ator alemão ressuscitou e foi incorporado por Willem Dafoe. Stanislavski perde.