Muitas pessoas já estiveram dentro do inferno, gostaram, mas quando o fogo realmente começou a queimar não souberam como se proteger e como sair da tensão física e psicológica. Outras fizeram da descida vertiginosa um trampolim para a vida. Angela Ro Ro pertence ao último grupo. Catedrática no assunto, seu PhD é tamanho que, com um bom humor intrínseco, é hoje capaz de tirar piada e, melhor ainda, versos autocríticos de belas canções. Numa delas, Sim, dói – faixa do ótimo álbum Acertei no milênio –, canção de levada folk, ela confessa: “Enfim, fui eu que armei a cilada pra mim.” A própria armadilha, diga-se, também serviu de celeiro de pedras para serem atiradas naquela que por muitos anos foi a Geni da música brasileira, a maldita dos palcos, a temida das gravadoras. Agora, Ro Ro pretende recuperar o tempo perdido. Diz estar mudada e disposta. Não que tenha se transformado numa Sandy enrouquecida. Mas com novos hábitos quer trabalhar, fazer música e mostrar ao mundo a grande intérprete que é. “Pela primeira vez estou confiando no corpo para salvar minha alma”, contou ela a ISTOÉ.

O exorcismo das loucuras passadas resultou num disco basicamente alegre. Há sete anos sem gravar, Ro Ro retornou aos estúdios da pequena gravadora Jam Music, que entendeu seu trabalho e a importância de o público ter novamente à disposição sua sensibilidade e sagacidade. Como parou de beber, de fumar e deixou as noitadas para as biografias, Ro Ro recuperou o fôlego. Está cantando melhor. A prova aconteceu em dezembro passado, na estréia nacional do show com repertório do novo CD, em São Paulo, e que os cariocas poderão agora assistir no Teatro Rival, da quarta-feira 31 ao sábado 3. O ápice do espetáculo acontece na canção-emblema Gota d’água, uma das principais faixas de Acertei no milênio. Mirando-se no olhar ensandecido de Maitê Proença na peça Isabel, a autora de Fogueira encara a platéia e reprisa no palco o que se ouve no disco. Ou seja, tatua na memória das pessoas a interpretação definitiva deste clássico de Chico Buarque. É como se ela destilasse todo o fel acumulado em décadas.

Ro Ro não está apenas mais magra, comendo barra de cereais no lugar de beber um litro de uísque e praticando bicicleta ergométrica matinal em vez de andar nas madrugadas no Baixo Leblon. Ela também deixou de desancar famosos e anônimos como forma de chamar a atenção. “A bebida traz à tona emoções embutidas. Levei muita porrada e isso me deixou amarga”, confessa. “Imagine uma pessoa amargurada, quando soltava a pressão eu falava o diabo.” Hoje, nem de leve a cantora lembra aquela fera ferida. Ro Ro passa a felicidade de quem ressurgiu. Entoa o amor em samba (Boêmia do sono), em bolero (O cinema, a princesa e o mar) ou em xote (Raiado de amor). É surpreendente ouvi-la cantando no ritmo da brasilidade. “Tenho um pingo de preservação do acervo cultural brasileiro. Eu me sinto cada vez mais eleita a carregar uma parcela dos 500 anos de Brasil.” Acompanhada de músicos de primeira, que privilegiaram as canções com cordas, percussão e sopros muito brasileiros, Angela Ro Ro acertou no milênio e no milhar.