Levante a mão quem jamais tomou um remedinho “receitado” por um amigo ou foi até a farmácia comprar um medicamento e saiu de lá levando dois ou mais na sacola. Manter um estoque em casa também é comum. Só que, além dos costumeiros analgésicos e produtos contra a febre, a maioria faz questão de guardar sobras de antibióticos e de outras drogas controladas. A mania é justificada pelo preço dos itens (normalmente altos) ou em nome da precaução. Afinal, quando surgirem dores de cabeça ou de estômago, por exemplo, a solução estará ao alcance da mão, no armarinho do banheiro, em cima da geladeira, no criado-mudo e até na bolsa. Pesquisa encomendada pelo laboratório Bayer ao instituto Marplan mostrou que 49% das mulheres entrevistadas em oito capitais brasileiras não saem de casa sem um analgésico a tiracolo (leia sobre os riscos desse remédio no quadro à pág. 84). Esse é apenas um dos sintomas da tendência para a automedicação que o Brasil tem. A característica, evidentemente, não está livre de efeitos colaterais.

Usar remédios sem prescrição médica é um hábito muito frequente entre nós. O comportamento é confirmado por algumas estatísticas. O País é o quarto consumidor de medicamentos e o oitavo mercado do mundo, movimentando cerca de R$ 16 bilhões por ano. Como a maioria das pessoas não tem dinheiro para adquirir os itens, significa que há uma parcela comprando demais. Pouca gente tem acesso a remédios. Quem tem, usa-os de forma descontrolada. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Saúde, cerca de 50% dos medicamentos controlados são vendidos sem exigência de prescrição médica. Os produtos com tarja vermelha são o principal alvo dessa venda fácil. O controle é mais rígido com as drogas com tarja preta (podem causar dependência), pois uma via da receita fica retida na farmácia. Um dos desdobramentos dessa situação é que muita gente usa substâncias potentes sem necessidade. É o caso da arquiteta A. C. L., 25 anos, de São Paulo. Ela e o namorado receberam de um amigo comprimidos de Viagra (para tratamento da disfunção erétil). “Sei que não é para mulher e que poderia não funcionar ou fazer algum mal, mas tomei mesmo assim. Fala-se tanto dos poderes da pílula que ficou difícil dizer não”, confessa. O casal não sofreu efeitos adversos.

Abusos como esse são culpa de quem? Para os especialistas, a automedicação é resultado de um contexto em que vários atores contracenam. Ela passa pelo sistema público de saúde, que não dá conta da demanda, pela prática da empurroterapia (venda comissionada de medicamentos) nas farmácias, por uma vocação do brasileiro para a pajelança (todo mundo gosta de receitar soluções) e pela necessidade de fiscalização mais eficaz. Esses são alguns dos pilares da encrenca, que traz sérias consequências. “No Brasil, a automedicação deve ser tratada como uma questão de saúde pública”, avalia Fernando Lefèvre, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. Uma das consequências mais graves do problema é a interação medicamentosa. Vários remédios não devem ser ingeridos juntos porque provocam reações perigosas (leia os quadros abaixo). Muita gente passa mal e vai parar no pronto-socorro porque tomou o que julgava ser o mais inocente dos remedinhos. “Todos os dias, recebemos pelo menos um paciente com hemorragia digestiva por causa de automedicação ou dose excessiva. É um problema sério”, diz Carlos Buchalla, supervisor do pronto-socorro do Hospital São Paulo. De acordo com ele, esse número pula para dez pacientes graves atendidos diariamente nos hospitais da capital paulista. O estudante Felipe Milanez, 23 anos, de São Paulo, já teve de recorrer a atendimento de emergência. Ele é alérgico e carrega sempre uma relação de remédios proibidos. Para acabar com uma dor nas costas, usou um analgésico que não estava na lista. “Quando senti que meu rosto e olhos inchavam, corri para o hospital. A dor nas costas continuou e se somou à dor da injeção para cortar o efeito da droga”, lembra.

Maquiagem – Outra consequência assustadora é o desaparecimento dos sintomas antes que a origem do mal seja esclarecida. “A doença fica maquiada, e adia-se o diagnóstico, dando tempo para que prolifere ou piore”, alerta o médico Edson Andrade, presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM). E há ainda a grave ameaça da dependência química. A possibilidade atinge principalmente os usuários de substâncias com ação no sistema nervoso central, ou seja, no cérebro. Entre elas estão benzodiazepínicos (diminuem a atividade cerebral), derivados de opióides (usados contra a dor) e anfetaminas (em geral, tomadas para emagrecer). Há mais um tipo de droga famosa por seus dependentes: as gotas adotadas contra o congestionamento nasal. O chef de cozinha André Mifano, 24 anos, conhece o problema. “Há nove anos um amigo me emprestou um medicamento para melhorar minha rinite. Não o larguei mais”, conta. Ele passou a consumir o remédio em quantidades cada vez maiores. Recentemente, Mifano fez um tratamento para largar a droga.

Quando a dependência prevalece, os estragos podem ser ainda maiores. A psiquiatra Patrícia Hochgraf, coordenadora do Programa de Atenção a Mulheres Dependentes Químicas, do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo, considera os danos deixados pela dependência por anfetamina comparáveis aos da cocaína. “Podem deixar sequelas irreversíveis”, afirma. Como as drogas para controlar o apetite, os medicamentos para dormir também se destacam. Pesquisa feita pelo Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostrou que cerca de 22% da população toma comprimidos para facilitar o sono. “Mais da metade (62%) não passou por consulta médica”, diz o neurologista Luciano Ribeiro Pinto, da Unifesp. Para combater esse uso crônico, a instituição está recebendo inscrições de pessoas com distúrbios do sono, entre 30 e 60 anos, que queiram participar do programa gratuito de desintoxicação para dependentes de benzodiazepínicos, que teve início neste mês. Ficar dependente não significa simplesmente consumir a droga em quantidades absurdas. “Precisar do remédio uma vez por semana já pode configurar dependência”, explica o psiquiatra Danilo Baltieri, do HC paulistano. O perigo é controlado quando há acompanhamento médico. “O problema é que muita gente inicia um tratamento com supervisão médica, mas depois o assume por conta própria”, alerta. A administradora Ligia Lombardi, 40 anos, de São Paulo, deu um jeitinho para resolver seu problema. Há mais de três anos aproveita uma receita antiga para comprar antialérgicos. “Guardo o papel no armário”, revela. Passar pelo médico nem sempre implica consumo seguro. Há quem modifique as indicações. Isso não deixa de ser automedicação. A diarista Maria de Fátima dos Santos, 47 anos, também de São Paulo, decidiu reduzir pela metade a quantidade prescrita de uma droga para labirintite. “No começo, usava dois comprimidos por dia. Mas o medicamento custa R$ 60 e dura um mês. É caro. Como não tive mais crises, agora tomo apenas um por dia. Assim, uma caixa dura dois meses”, conta. Há médicos que têm grande participação na automedicação. Alguns dão prescrições para vizinhos, amigos e conhecidos sem examiná-los. Um levantamento da Unifesp mostrou que é grande o número de receitas indevidas de drogas psicoativas (anfetaminas e benzodiazepínicos).

Crianças – Mesmo com outros tipos de medicamentos há situações graves. Principalmente com os pequenos. Eles representam 34% dos casos de intoxicação por remédios registrados pelo Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio, que monitora 31 serviços distribuídos pelo País. “Na maior parte das vezes, o problema ocorre por acidente”, alerta a toxicologista Darciléia Amaral, de São Paulo. Por isso, uma das prioridades dos especialistas é ensinar aos pais regras de prevenção. “Na hora de dar remédio, não se deve dizer à criança que xarope é refresco ou docinho”, exemplifica Maria Hélide Bortoletto, coordenadora do Sinitox. O pediatra Eduardo Troster, do HC de São Paulo, explica aos pais que não há mal em dar um antitérmico ao filho sem levá-lo ao médico se a criança passou por consultas anteriores e se o casal está bem esclarecido sobre os problemas da criança. “Poderíamos dizer ao brasileiro para não se automedicar se houvesse um sistema de saúde pública competente”, sustenta.

Balcão – Há mais uma ponta a considerar quando se trata de automedicação: as farmácias. No Brasil, há cerca de 55 mil estabelecimentos desse tipo, o equivalente a uma farmácia por três mil habitantes. “É um exagero”, desabafa o médico sanitarista José Rubem Bonfim, presidente da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime). Ele considera a ausência de farmacêuticos durante o expediente e a falta de formação dos balconistas mais um incentivo à venda de remédios sem receita. Pela lei, a presença do farmacêutico é obrigatória nas drogarias durante oito horas diárias. A Associação Brasileira de Farmácias (Abrafarma) revela que apenas 33% das 13 mil farmácias paulistas dispõem de um farmacêutico em período integral. Na maioria dos estabelecimentos (40%), ele jamais é encontrado. Essa ausência favorece a empurroterapia, comum no Brasil. O número excessivo de medicamentos à venda põe mais lenha na fogueira. De acordo com a Sobravime, existem cerca de 9.500 apresentações de remédios nas farmácias, muitos com o mesmo princípio ativo e indicação. “O volume de remédios é indecente”, observa o médico Cláudio Schartzman, da comissão de farmácia do Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Existem ainda problemas de qualidade do remédio. Atenta ao problema, a Anvisa sabe a necessidade de fazer uma revisão desse mercado. De abril a setembro, ela retirou 48 medicamentos das farmácias. Outros 170 estão sob análise.

Os problemas não terminam aí. A mais nova personagem da automedicação é a internet. Pela rede, é possível conhecer novos remédios e tratamentos. O fato é que não dá para confiar em qualquer site e aceitar indicações. “Devem-se evitar as consultas eletrônicas”, orienta Regina Parizzi, presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp). A questão se torna ainda mais complexa quando o assunto é a comercialização de remédios. Há farmácias virtuais que facilmente vendem medicamentos controlados. A reportagem de ISTOÉ encomendou uma caixa de Viagra num site. Não fosse a tarja vermelha da caixa, o atendimento teria sido perfeito. O produto foi entregue em menos de dez horas, sem exigência da receita. Como forma de controlar esse mercado, a Anvisa prepara um projeto de regulamentação. Para proteger o consumidor, o Cremesp lançou um manual com dicas para o internauta. Uma delas é preferir sites que indiquem, de maneira clara, o nome dos responsáveis pelo conteúdo.

A automedicação é uma praga e, contra ela, é necessário ter uma abordagem ampla e organizada. Propostas não faltam. Cada setor tem a sua. Uma delas, defendida pela Associação Brasileira das Indústrias de Produtos para a Saúde (Abips), sugere a divulgação da automedicação responsável. Trata-se do consumo por decisão própria apenas de drogas isentas de prescrição – sem tarja preta ou vermelha –, tendo o cuidado de ler a bula e com a disposição de ir ao médico se os sintomas persistirem. Aparentemente, tudo certo. Mas, para o presidente do Conselho Federal de Medicina, não existe automedicação responsável. “Muitas doenças têm sintomas parecidos e podem enganar o doente”, afirma Edson Andrade. A Abips tem outras propostas polêmicas, como aumentar a lista de remédios vendidos sem receita. Gonzalo Vecina, diretor-presidente da Anvisa, avisou que não vai ampliar essa lista enquanto a venda de medicamentos não for corrigida na farmácia.

Controlar a automedicação no Brasil é um desafio. “Essa discussão sempre aparece como denúncia de pesquisa universitária. Mas é necessário procurar várias formas de enfrentamento”, defende Regina, do Cremesp. Mas há luz no fim do túnel. Alguns órgãos, por exemplo, já começam a somar forças. O Centro de Vigilância Sanitária (CVS) de São Paulo e o Cremesp, por exemplo, estão unidos em um programa lançado este mês para estimular os médicos a notificar as duas entidades sobre reações inesperadas ou adversas dos medicamentos. “Dá resultado”, garante Marisa Carvalho, diretora do CVS paulista. Avisado de que pacientes tratados com uma droga à base de clozapina (contra esquizofrenia) não apresentavam melhora, o centro descobriu um erro na composição do princípio ativo usado no remédio denunciado. Ele primeiro foi vetado em São Paulo. Há cerca de um mês, sua venda foi proibida no País. É um problema a menos. O consumidor agradece.

Colaborou: Juliane Zaché
Produção: Lívia Mund; Cabelo e maquiagem: Régis Marciliano;
Modelo: Juliana Patrícia Fúrio (Ag. Taxi);
Agradecimentos: Amarilis, Beth Salles, Valfrance

Mistura explosiva

Geralmente, quem é viciado na automedicação não se contenta em engolir só um comprimido. Além disso, muitas vezes esses consumidores não resistem a um remédio diferente assim que uma dorzinha aparece. O efeito pode ser desastroso. A razão está no fato de que cada droga possui um (ou mais) princípio ativo. As substâncias podem produzir reações indesejáveis, como sonolência excessiva (confira mais no quadro), se tomadas juntas. Esse risco é conhecido como interação medicamentosa. “Qualquer pessoa que tome mais de uma droga corre risco”, avisa Sérgio Graff, toxicologista de São Paulo.

As interações podem aumentar a ação de um remédio, diminuí-lo ou modificá-lo. E elas não se limitam à combinação droga com droga. Tomar comprimido com algumas bebidas, como café e álcool, também pode prejudicar sua eficácia. Nem sempre o paciente se dá conta disso porque às vezes os sintomas provocados são leves. “Isso prejudica o diagnóstico”, afirma Seize Oga, professor de toxicologia da USP. Para os especialistas, a bula dos remédios é uma das responsáveis pelo problema. “Ela deveria falar a língua do paciente”, diz Graff.

Doente de doenças

Diferentemente do que se imagina, o hipocondríaco não é aquele que se preocupa demais com a saúde. A hipocondria, classificada em diversos tipos, é uma doença. “Ela pode se manifestar de várias formas. O paciente pode ter fobia de um mal específico, geralmente males incuráveis e graves. Pode ter pânico de contrair qualquer tipo de enfermidade em que uma dor de cabeça comum, por exemplo, pode se tornar algo que ameaça a saúde. Há até uma hipocondria delirante, quando a pessoa pensa que está doente e mesmo os exames não são suficientes para ela acreditar que está bem”, explica Márcio Bernik, psiquiatra do Hospital das Clínicas de São Paulo. Quem sofre desse problema frequentemente vai de médico em médico para garantir que não sofre de nada grave. No Reino Unido, o profissional de saúde atua por região (seus pacientes estão limitados ao bairro), o que diminui essa prática. Prova disso é que o índice de hipocondríacos é menor do que nos Estados Unidos, onde a mania é tão comum que ganhou apelido: doctor shopping.