Um sobrenome árabe, uma barba ou apenas um turbante são suficientes para identificar o que, nos dias de hoje, está sendo considerado discípulo do diabo. Principalmente se o diabo em questão for o saudita Osama Bin Laden. Depois do atentado do dia 11 de setembro nos EUA, o mais triste legado desses ataques foi o despertar de um preconceito feroz contra árabes e muçulmanos. Na caça aos terroristas responsáveis pelas atrocidades que chocaram o mundo, os seguidores de Alá e os descendentes das nações árabes passaram a ser vistos como inimigos. Até mesmo os que não têm nada a ver com árabes ou com o islamismo, como os sikhs indianos – cuja única semelhança com os muçulmanos é o turbante –, estão sendo vistos como pessoas perigosas. Nos EUA vivem hoje cerca de seis milhões de muçulmanos, sendo dois terços deles árabes. Desde os atentados, só em território americano já foram computados mais de 400 casos de agressões contra muçulmanos. Com pessoas que usam turbantes foram registrados mais de 200 incidentes. Gente inocente que está pagando o preço dos outros seis mil inocentes que morreram nos ataques terroristas. E, assim, uma febre perigosa, como uma praga dos tempos modernos, espalha-se pelo planeta.

Para abrandar a temperatura do ódio racial, o presidente americano, George W. Bush, alertou, em seu discurso ao Congresso, para o perigo da retaliação às comunidades islâmicas. “Quero me dirigir diretamente aos muçulmanos de todo o mundo. Nós respeitamos sua fé. Os terroristas são traidores de sua própria fé, tentando, de fato, fazer o Islã de refém. Precisamos tratar os árabes-americanos e os muçulmanos com o respeito que eles merecem”, avisou o presidente. Ele também visitou uma mesquita em Washington, mas parece que não adiantou muito. Quatro dias depois das explosões em Nova York, o sikh indiano Balbir Singh Sodhi foi morto a tiros em seu posto de gasolina em Phoenix.

Violência – Pilotos americanos também estão recusando passageiros com aparência de árabe. O paquistanês Ashraf Khan, sentado sozinho na primeira classe de um vôo da Delta Airlines que saía de San Antonio, no Texas, foi abordado pelo comandante do avião, que pediu que ele se retirasse. Em Orlando, na Flórida, dois empresários paquistaneses foram avisados de que o piloto da US Airways não decolaria com eles a bordo.

Em alguns casos, a agressão é menos sutil. O estudante brasileiro Hermes Barbosa Lima, 23 anos, foi confundido com um árabe e acabou severamente espancado por um grupo de jovens em Bridgeport, Connecticut. Lima tentou dizer que era brasileiro, mas não houve tempo. Ele teve um dos braços quebrados e agora usa uma bandeira brasileira para ser identificado.

O prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, chegou a pedir proteção às famílias árabes da cidade. A estudante nova-iorquina Fariba Nawa, filha de afegãos, está com medo de sair à rua. “Estou escondida em minha própria casa”, disse ela. A intolerância dos americanos que se sentem ameaçados cresce, ainda que não se saiba exatamente quem é o inimigo. “A maior parte dos países árabes tem boas relações com os EUA. Mesmo assim, sente-se o preconceito. É difícil explicar, mas há várias razões, políticas, culturais e históricas, para isso. Algumas delas são seculares. Até hoje, os cristãos vêem com desconfiança a expansão do islamismo. A posição dos EUA em relação ao Oriente Médio também não ajuda, uma vez que os americanos sempre ficaram do lado dos israelenses. Fora isso, os ocidentais não compreendem a cultura mulçumana”, afirmou a ISTOÉ Khalia Jahshan, vice-presidente da maior entidade árabe nos Estados Unidos, a Associação Árabe-Americana. Nos EUA, uma nação pluralista, poucos sabem que a maior parte dos árabes, por exemplo, professa a religião cristã e que os fiéis do islamismo estão agregados em comunidades de distintas nações.

SOS aos árabes – A Comissão de Direitos Humanos dos EUA criou uma linha de emergência para atender as vítimas do preconceito. O secretário de Justiça, John Ashcroft, confirmou ter recebido centenas de denúncias contra os árabes nos EUA. Preocupado com a onda revanchista, o presidente Bush encontrou-se, na quarta-feira 26, em Washington com líderes sikhs e muçulmanos. “Peço a todos que respeitem a vida humana e os valores que fizeram nosso país diferente e especial. Somos todos americanos, unidos por ideais e valores comuns”, afirmou Bush. Ele também disse que não há justificativa religiosa para o que Osama Bin Laden, que classificou como “homem diabólico”, tem em mente. O presidente enfrenta o preconceito no próprio partido. O deputado republicano John Cooksey precisou desculpar-se publicamente depois de ter afirmado que todo homem que usa turbante deveria ser detido para averiguações.

Campanha nacional – Para curar as feridas da intolerância, organizações de direitos humanos estão sugerindo ao governo americano uma campanha que conscientize a população sobre os perigos do ódio racial. Escolas e universidades do Estado de Virgínia saíram na frente, propondo debates abertos sobre o tema. Para Khalia Jahshan existem dois problemas sérios a serem combatidos: o preconceito dos cidadãos contra os árabes, que acaba desencadeando confrontos, e a imagem negativa das populações árabes e de seus costumes no Ocidente. Mas ele se diz satisfeito quanto à performance de Bush, mesmo quando o assunto é a prisão sem mandado dos suspeitos dos atentados. O mesmo FBI que investiga 40 denúncias de crime racial e religioso já prendeu cerca de 400 pessoas suspeitas de integrarem o esquema de Bin Laden – a maior parte delas muçulmana. Muitas dessas prisões ocorrem com poucas ou nenhuma evidência de que o detento seja culpado.

Se até agora Bush vem tendo apoio para suas ações, um projeto de lei antiterrorismo pode criar divergências, principalmente entre a maioria republicana no Congresso, por um lado, e a oposição democrata e os ativistas de direitos humanos, por outro. O projeto é um monstrengo jurídico. Permite que confissões obtidas sob tortura possam ser utilizadas como prova, desde que ocorridas fora do território americano. Autoriza a prisão, sem mandado e por tempo indeterminado, de imigrantes ou cidadãos estrangeiros que estiverem de passagem pelos EUA. Permite a deportação sumária de imigrantes que estejam em situação irregular.

Esse é o risco que corre o paulistano de origem árabe Khaled Darwich, 21 anos, um dos 98 detidos pelo FBI nestas condições, nas últimas semanas. Desde a sexta-feira 21, ele está totalmente isolado em uma prisão de Memphis, no Tennessee. Darwich, casado com a americana Nura, trabalhava como taxista. A família do rapaz alega discriminação, mas em sua ficha policial constam dois fatos que o tornam suspeito. O primeiro é uma passagem pelo Porto Sudão, em Suez, onde morou de 1992 a 1995, quando se mudou para os EUA. Darwich também foi fichado por ter agredido sua mulher. Mas para o cônsul-geral do Brasil em Miami, Lúcio Amorim, Darwich está preso por estar em “situação irregular”. “Ele está com o visto vencido desde 1996. Se fosse um brasileiro em situação regular, talvez isso não tivesse acontecido”, disse Amorim a ISTOÉ.

“Civilização superior” – Mas a paranóia dos “seres árabes ameaçadores” não acontece só nos EUA. No Reino Unido, segundo o presidente da Comissão Islâmica de Direitos Humanos, Masoud Shadjareh, “houve um aumento considerável de agressões em bairros londrinos onde há maior concentração de muçulmanos, como Wembley e Londres Ocidental”. Na Espanha, seis argelinos foram detidos por suspeita de ligações com o terrorismo. Mas o pior foram as declarações do premiê italiano, Silvio Berlusconi: “Devemos estar conscientes da superioridade da nossa civilização, que garantiu o bem-estar, os direitos humanos e a tolerância política e religiosa, o que não é uma tradição entre os islâmicos” e que “a civilização islâmica está estagnada há mais de 1.400 anos”.

Entre as detenções equivocadas nos EUA está a do médico radiologista Albader Alhazmi, 34 anos, que havia feito reserva para um vôo, no sábado 22, que ia de San Antonio a San Diego. Não havia provas e ele foi libertado. O sentimento da comunidade árabe talvez possa ser resumido pela frase do policial Ron Arnold, 43 anos: “Eu sou afro-americano e senti o preconceito na pele durante toda a minha vida. Isso não está certo.”