Se Hélder Câmara tivesse nascido Vinicius de Moraes, certamente ele teria escrito o mesmo verso que o poeta compôs:

“É melhor ser alegre que ser triste”

A alegria era a marca da alma e da ação de dom Hélder, e somente os muito alegres (nada a ver com riso fácil e ingenuidade) são capazes de transformar utopias em concretude – por isso, tivesse mesmo dom Hélder vindo ao mundo como Vinicius, também esses outros versos ele teria feito de forma idêntica àquela que “Vininha” fez no poema “Operário em Construção”:

“Era ele quem erguia as casas
onde antes só havia o chão
como um pássaro sem asas
ele subia com as casas
que lhe brotavam das mãos”

O alegre dom Hélder foi um padre-operário, grudou as mãos em cimento e tijolo para construir paróquia e casa de pobre, mas, acima de tudo, foi um padre-operário na construção de um Brasil socialmente mais justo na distribuição de riqueza, na cor e no gênero. No domingo, 3 de maio, será aberto oficialmente na catedral de Olinda o seu processo de beatificação, e as autoridades eclesiásticas brasileiras terão agora de comprovar dois milagres com sua mediação para que ele seja canonizado. Formalidades canônicas são formalidades canônicas, mas me atrevo a achar que o informal Francisco daria ouvidos a quem, também informalmente, lhe explicasse sobre esse cearense:

– Francisco, o Hélder operou não dois nem três nem mil milagres, mas o maior de todos eles: lutou no Brasil (no Brasil, papa, no Brasil!!!) ao longo de noventa anos por um País mais justo e livre da corrupção (amém).

A alegria e a realização eram a sua fé. Se hoje tem político que se autoenaltece por regulamentar a profissão de empregada doméstica, vale lembrar que foi dom Hélder (1933, aos 24 anos de idade) o pioneiro a reunir cozinheiras e faxineiras, passadeiras e lavadeiras e engomadeiras na entidade Sindicalização Operária Feminina Católica. Ao ser transferido de Fortaleza ao Rio de Janeiro, então capital do País, sente interesse em conhecer de perto a Ação Integralista mas dela logo se afasta ao perceber que seu programa assistencialista era apenas a pele da ovelha sobre a carne do lobo do fascismo. Em 1950, sem ao menos ser bispo ainda, pede licença ao Vaticano para construir a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, uma das instituições mais respeitadas no cenário social e político nacional. Manteve-se na função de secretário-geral da entidade até 1964 quando se instaurou no País a ditadura militar – e, a partir do AI-5, ele foi proibido de falar e ninguém mais podia citar o seu nome publicamente.

A alegria de sua alma ditou-lhe então duas frases antológicas que por si só já valem os dois milagres da canonização. A primeira: “quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto o motivo pelo qual são pobres, me chamam de comunista”. Eis a segunda: “Graça das graças é não desistir jamais”. É o milagre dessa santa teimosia que alguém tem de contar a Francisco.

E avisá-lo que, ao contrário do proposto no início desse artigo, se fosse Vinicius de Moraes que tivesse nascido dom Hélder também com certeza ele teria escrito o que o religioso escreveu, tal a devoção de ambos pela paz:

“Um dos meus anseios
de chegar ao infinito
é a esperança de que,
ao menos lá,
as paralelas se encontrem”

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ