O presidente do Supremo, Marco Aurélio Mello, teme quea retaliação dos EUA aos terroristas se transforme numanova versão da lei de Talião

Ao tomar posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, em maio deste ano, o ministro Marco Aurélio Mello, um carioca de 55 anos, flamenguista fanático, avisou que não iria tocar fogo na República. Foi um recado para acalmar o Palácio do Planalto, parlamentares e até os próprios colegas do Judiciário, que o consideram um juiz de língua afiada e de decisões polêmicas. E, de fato, é. Em abril de 1996, surpreendeu a todos quando inocentou o namorado adulto de uma menina de 14 anos, acusado de estupro e sedução. Marco Aurélio chegou a este veredicto porque a menina há tempos mantinha relações sexuais com o homem. Casado com a juíza federal Sandra De Santis Mello, com quem tem quatro filhos, Marco Aurélio foi nomeado em 1990 para o Supremo pelo primo, o ex-presidente Fernando Collor de Mello. Ao assumir a presidência do STF, comprou algumas brigas. Demitiu 20 funcionários aposentados que continuavam como assessores e multiplicavam os salários e suspendeu o reajuste de 11,98% dos funcionários do Tribunal por falta de previsão orçamentária. Na semana passada, cortou o fausto lanche com produtos importados servido todos os dias a ministros e funcionários. Com sua linguagem empolada, o presidente do Supremo não se nega a opinar sobre o que está sendo discutido pela sociedade. Sobre os atentados terroristas nos Estados Unidos, alerta para o risco de vingança dos americanos. “Não podemos voltar à lei de talião.” Quanto aos assuntos internos brasileiros, também toma posições. É a favor das cotas para negros nas universidades e critica o adiamento do reajuste salarial concedido pelo governo aos militares. “Esta indefinição só gera insegurança”, argumenta. Na opinião do ministro, o grande culpado pelo atraso no trabalho da Justiça é o próprio Estado. “É incompreensível que mais de 80% dos processos em tramitação no STJ e Supremo tenham sido provocados pelos governantes”, critica o ministro, que na entrevista a seguir falou desta e de outras polêmicas.

ISTOÉ

Ministro, que reflexão devemos ter depois dos atentados nos Estados Unidos?

Marco Aurélio

Nada justifica a monstruosidade que se viu pela televisão. Devemos parar e tentar perceber a origem disso, porque na vida nada surge sem uma causa. Será que não houve erro na busca do entendimento e na correção das desigualdades? O poder da força, que é a minoria, tem que parar para ouvir a maioria da população do mundo que está na miséria. É preciso uma solidariedade maior e jamais rechaçar o entendimento. Não é possível, apenas porque um país detém o poder da força, radicalizar em nenhum campo. O bom senso deve prevalecer neste momento. Se é preciso buscar os responsáveis, também é fundamental a racionalização, e não o mesmo radicalismo dos que derrubaram os aviões em Nova York e Washington.

ISTOÉ

 O que o sr. mais teme agora, depois dos atentados?

Marco Aurélio

 Receio que prevaleçam paixões condenáveis e a população civil de países que abrigam terroristas pague por ações de grupos radicais. Não podemos voltar à lei de talião, em que o princípio é olho por olho, dente por dente, porque vivemos num mundo civilizado. É preciso que as autoridades internacionais reforcem o diálogo e jamais abandonem a negociação.

ISTOÉ

E a posição do Brasil diante desta guerra não declarada?

Marco Aurélio

 O Brasil tem na Constituição normas que rechaçam o terrorismo, que não pode ser encarado, de forma alguma, de maneira contemplativa. O terrorismo merece total excomunhão.

ISTOÉ

O Congresso dos Estados Unidos suspendeu as salvaguardas individuais. Isso não é um perigo?

Marco Aurélio

 Não precisamos de regras de exceção, condenáveis sob todos os ângulos, para apurar a responsabilidade de quem cometeu crimes contra a humanidade como os que presenciamos em Nova York e Washington. O respeito às salvaguardas constitucionais é o preço que pagamos por viver na democracia. O respeito à dignidade do homem está acima de tudo. Não é pelo caminho da suspensão dos direitos individuais que se responsabiliza quem errou. Nada justifica a colocação em plano secundário dos direitos inerentes ao homem, que visam preservar sua dignidade.

ISTOÉ

Por que os servidores públicos têm direito ao reajuste salarial acima do porcentual que o governo propõe?

Marco Aurélio

 O Supremo Tribunal definiu este direito porque a Constituição assegura a irredutibilidade dos salários. Logo, é preciso que se mantenha a equação inicial de que ao trabalho corresponde o salário justo. E esta equação não está equilibrada. O salário foi corroído pela inflação e perdeu o poder de compra. Além do reajuste, o Supremo também apontou a omissão do Executivo, que ainda não encaminhou projeto de lei ao Legislativo com a previsão do reajuste.

ISTOÉ

Mas isso não é reindexar novamente os reajustes salariais, ressuscitando a inflação, como argumenta o presidente Fernando Henrique?

Marco Aurélio

 Mas por que este raciocínio apenas em relação aos salários? Por que não excomungar vez por todas as indexações, acabando com o reajuste automático de tarifas de serviços públicos? No setor privado, temos a revisão de preços de mercadorias e o mercado atua também a partir de uma inflação. Nós precisamos manter a política governamental harmonizada com a Constituição, e não o inverso. Estou certo de que o Executivo cumprirá a decisão do Supremo, encaminhando nos próximos dias um projeto de lei ao Congresso estabelecendo a revisão dos vencimentos. Vivemos num Estado democrático de direito, e, se houver o descumprimento da decisão da mais alta corte do País, aí teremos que repensar o Brasil.

ISTOÉ

Por que o Supremo não toma a mesma decisão sobre os reajustes dos trabalhadores do setor privado, que foram atingidos pela mesma inflação e são regidos pelo mesmo princípio constitucional que impede redução de salários?

Marco Aurélio

Os trabalhadores organizados acabam repondo o poder aquisitivo negociando ou mediante acordo ou convenção coletivos. Quem não está organizado tem a Justiça do Trabalho para reclamar a reposição salarial através do dissídio coletivo.

ISTOÉ

 O governo concedeu e depois adiou o reajuste salarial dos militares. Que tipo de confusão isso pode gerar?

Marco Aurélio

 Não se deve acenar com uma vantagem e depois suprimi-la. Ao conceder o reajuste e depois retirá-lo, o governo gera uma grande insegurança jurídica. Os militares já tinham programado seus orçamentos com base na promessa do governo e agora têm suas expectativas suspensas.

ISTOÉ

Diante de todas as mudanças nas relações empresa-empregado, Estado-cidadão, globalização, não deveria haver uma flexibilização da lei trabalhista?

Marco Aurélio

Esta flexibilização é uma utopia. Temos oferta excessiva de mão-de-obra e escassez de emprego. Então, a interferência do Estado nessa relação jurídica é indispensável. Daí a necessidade do poder normativo da Justiça do Trabalho. Enquanto nós tivermos o mercado com esta peculiaridade, a interferência do Estado visará corrigir desigualdades. A Justiça do Trabalho tem sido responsável pelo restabelecimento da paz social. E o seu fim, além de sobrecarregar a Justiça Federal, levaria o trabalhador, para sobreviver, a aceitar as condições propostas pelas empresas. Os empresários, na busca desenfreada do lucro, ofereceriam o menor salário possível. Isso só seria bom se pretendêssemos o caos.

ISTOÉ

 Qual reforma deve ser feita no Poder Judiciário?

Marco Aurélio

Dá-se uma ênfase muito grande à mudança constitucional para reformar o Judiciário, como se fôssemos conseguir celeridade e economia processuais ou rapidez na prolação das sentenças. O que precisamos é buscar as causas. Nos últimos 30 anos tivemos mais de dez planos econômicos elaborados sem a participação decisiva do técnico do direito, com a predominância do enfoque econômico, tecnocrata, atropelando os direitos para se tentar controlar a inflação. Com isso, ficaram em segundo plano os direitos adquiridos, como, por exemplo, no caso do FGTS. Hoje temos estabilidade econômica razoável, mas a instabilidade econômico-financeira de outrora foi substituída pela instabilidade normativa. Nos últimos anos, 80% dos processos em tramitação no Supremo e no Superior Tribunal de Justiça envolvem o Estado – União, Estados e municípios – autarquias e fundações públicas. Os governantes – e não me refiro apenas aos atuais – têm claudicado e tripudiado o cidadão. Isso é incompreensível. Os governos têm gerado o conflito, tanto que se fala muito em esqueletos que terminam aparecendo.

ISTOÉ

Quando o Executivo não concede reajuste salarial aos servidores, quando não paga os precatórios ou quando suspende unilateralmente a liberação de verbas previstas na lei orçamentária, descumpre a Constituição. O que fazer para que o governo cumpra a lei?

Marco Aurélio

O governante que não cumpre a lei comete crime de responsabilidade. No caso dos precatórios, a Constituição prevê que prefeituras, Estados e União devem prever nos seus orçamentos o pagamento dos precatórios. No Supremo Tribunal temos cerca de três mil processos pedindo intervenção em Estados por falta de pagamento dos precatórios. Por que o Estado de São Paulo deve hoje cerca de R$ 8,5 bilhões em precatórios? Com o critério de não se indexar o valor dos precatórios, apostou-se na morosidade da Justiça e partiu-se para o descumprimento das decisões judiciais. Um dirigente público nunca teve receio de desapropriar um bem imóvel porque imaginava que não teria de liquidar em seu mandato o valor da indenização, prevista na Constituição. E empurrava o problema para o sucessor. Esta situação se agravou. A União, Estados e municípios são perdedores na grande maioria das ações. E mesmo assim, quando a decisão da Justiça sai, os governantes não a cumprem. E o Judiciário acaba desacreditado pelo cidadão, que não bate à porta do Executivo nem do Legislativo porque lá elas não abrem.

ISTOÉ

Por que não se decreta intervenção em Estados que não pagam precatórios?

Marco Aurélio

 Temos condições e o instrumental para compelir o dirigente público a respeitar as decisões do Judiciário, mas imagina-se que esta intervenção seja demasiadamente traumática. E ainda há uma corrente que sustenta que só se deve definir a intervenção quando se têm recursos disponíveis para uso imediato. É muito importante que o Estado dê o exemplo.

ISTOÉ

Os Três Poderes são independentes e harmônicos. Mas o Executivo elabora e executa o orçamento, mantendo a prerrogativa de adiar e até proibir gastos dos demais poderes. Não há dependência do Legislativo e do Judiciário ao Executivo?

Marco Aurélio

 Isto não deveria ocorrer. O Judiciário tem sempre a última palavra sobre qualquer impasse. Quanto ao orçamento, a Constituição prevê autonomia dos poderes no seu encaminhamento. O Executivo não pode alterar o orçamento do Judiciário. Não cabe deixar de liberar o dinheiro porque o orçamento aprovado pelo Congresso é para valer. Quando o Executivo suspende a liberação do recurso previsto no orçamento, não cumpre a Constituição. A lei orçamentária aprovada no Congresso tem de ser observada.

ISTOÉ

O Congresso limitou o uso das MPs, mudando os critérios para adoção e vigência. Mas elas continuam com o poder de vigir por 60 dias e podem ser alteradas pelo Executivo. Como fica a cabeça do juiz com tanta mudança?

Marco Aurélio

 Juízes, advogados do Estado e do setor privado e o Ministério Público convivem com um verdadeiro entulho legislativo. Primeiro, temos duas espécies de revogação de atos normativos. A expressa, que cita as leis que deixam de viger, e a revogação implícita, que sugere inúmeras dúvidas ao dizer “revogam-se as disposições em contrário”. E aí dane-se o operador do direito para definir o que é contrário e o que não é contrário. Os interesses dos envolvidos num conflito é que nortearão esta definição. Os magistrados, então, que são os responsáveis pela declaração do direito incidente na espécie, do direito posto pelos legisladores, vivem um verdadeiro pandemônio, tendo de pinçar o que está em vigor, o que não está em vigor, qual a medida provisória em vigor.

ISTOÉ

O Congresso Nacional vai discutir se aprova ou não uma lei impondo cotas para negros nas universidades. O que o sr. pensa da idéia?

Marco Aurélio

 Aprendi no direito do trabalho que as correções de desigualdades só se conseguem com a obrigatoriedade da lei. Neste caso, especificamente, precisamos avançar com uma política afirmativa, aprovando uma legislação que permita dar mais oportunidades aos negros.

ISTOÉ

Quem são os responsáveis por tanta demora nos julgamentos?

Marco Aurélio

 Não podemos exigir do juiz uma produção maior do que vem ocorrendo. É incompreensível que sob a direção de um mesmo juiz se tenha cerca de dez mil processos. É hora de se mudar a postura. Hoje, lastimavelmente, os governantes apostam na morosidade da Justiça. Os governos devem respeitar o ordenamento jurídico em vigor.