Se não fosse a interferência da família, o soldado Carlos*, um carioca de 23 anos, já estaria morto. Traficantes da favela Rato Molhado, em Higienópolis, zona norte do Rio de Janeiro, invadiram sua casa para executá-lo, depois de descobrirem que ele era policial militar e não guarda municipal. Sua profissão foi descoberta depois de uma ocupação feita na favela para desbaratar o tráfico. Carlos, que servia na Barra da Tijuca foi deslocado para o 3º BPM, no Méier, zona norte, para participar da ocupação. Desde então, sua vida virou um inferno. A família da esposa salvou sua pele garantindo aos traficantes que ele sairia da favela. Carlos então fugiu com a mulher e a filha recém-nascida. Por não terem para onde ir, acabaram dormindo dois dias no carro estacionado em frente ao batalhão, no Méier. Na quarta-feira 12, o tenente-coronel Jorge Romeu do Nascimento, do 3º BPM, solicitou oficialmente a ajuda da Associação dos Ativos, Inativos e Pensionistas das Políticas Militares e Corpo de Bombeiros (Assinap).

O drama que Carlos está vivendo já virou rotina na vida dos PMs nas grandes cidades. Os filhos do soldado José*, 39 anos, por exemplo, são chamados na favela Vila Vintém, em Realengo, zona oeste do Rio, de X-9. A gíria é usada para identificar os delatores. As duas crianças, menores de dez anos, não conseguem reagir à hostilidade dos vizinhos e caem em prantos. O telhado da casa do soldado Carlos*, 42 anos, uma moradia simples no alto do Gogó da Ema, outra favela, já virou posto de observação dos traficantes. É de lá que os “olheiros” do Terceiro Comando tomam conta de quem entra e sai da favela. Carlos entra mudo e sai calado de casa. Finge que não é da polícia para não morrer. No seu telhado, o tráfico é liberado. Já o recruta Manoel*, 28 anos, morador de um bairro popular em Campo Grande, zona oeste, antes de se inscrever na PM achou por bem pedir licença aos gerentes da boca-de-fumo, a 100 metros da sua casa.

Inversão – Com baixos salários, soldados, cabos e sargentos são obrigados a morar em favelas ou áreas de risco. Como praticamente todos os morros do Rio estão dominados pelo tráfico, policiais e bandidos são vizinhos. A situação cria um cenário insólito. Os PMs, treinados para defender a ordem e proteger o cidadão, têm medo dos vizinhos. Em vez de se orgulharem das fardas, escondem a identidade. Acuados no próprio lar, vivem no anonimato e, em vez da disciplina dos quartéis, seguem as leis do tráfico.

O Rio não é o único cenário desse absurdo. São Paulo vive situação idêntica. Foi a falta de dinheiro que levou o policial César* a mudar-se para o Jardim Ângela, favela na zona sul da capital. A família ainda não tinha se acostumado com a nova moradia quando o PM foi baleado na perna por um encapuzado. O tiro era a senha para indicar-lhe que não era bem-vindo. Mas a falta de dinheiro obrigou-o a continuar morando lá. Depois do tiro, vieram os bilhetes. “Avisem ao gambé (policial na gíria do tráfico) que vamos descobrir o barraco dele, invadir, matar ele, a mulher e as suas crias. E quem souber onde ele mora e não nos avisar vai morrer também.” Foram sete anos de tortura silenciosa. Todos em casa eram proibidos de comentar a real identidade de César*, que trabalha no patrulhamento de rua.

A situação no Rio já levou o general Alberto Cardoso, chefe do Gabinete Militar da Presidência da República, a classificar como terrorismo os ataques a policiais. No ano passado, 62 PMs foram assassinados no Rio pelo tráfico. Até a terça-feira 18, a Assinap já tinha recebido 29 pedidos de socorro. “São policiais que chegam aqui desesperados pedindo abrigo porque fugiram de suas casas para não serem eliminados pelo tráfico”, conta seu presidente, Miguel Cordeiro. A entidade construiu duas casas de trânsito, em Niterói, para abrigar os PMs sem teto. E ainda assinou um contrato com a Caixa Econômica Federal para facilitar a aquisição da casa própria para os policiais, com juros de 6% ao ano. “Estamos passando por momentos difíceis. Não é só o PM que vive com medo”, admite o tenente-coronel Luiz Soares de Oliveira, comandante do 23º Batalhão da PM, no Leblon. Em seu batalhão, os oficiais entram e saem à paisana. Ninguém leva a farda para casa. Usam a lavanderia do batalhão ou a casa de amigos e parentes que moram longe das favelas. “Ou então a farda é lavada dentro de casa e a parte de trás da geladeira é usada como varal”, conta. Segundo o coronel, cerca de 80% de seus policiais moram em áreas de risco, ou seja, favelas dominadas pelo tráfico.

Para abrigar PMs e parentes que habitam áreas de risco, o secretário de Segurança Pública do Rio, Josias Quintal, chegou a pensar em construir prédios de 50 a 80 apartamentos dentro dos batalhões. A idéia é polêmica. O presidente da Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar, o sargento Vanderlei Ribeiro, é contra. “O governo deveria ter a decência de pagar salários dignos. Temos o direito de escolher onde morar”, esbraveja. O salário médio dos PMs é de R$ 400, o que obriga a maioria deles a fazer bicos como segurança particular. Indiferente à retórica oficial de que segurança é prioridade número um do governo estadual, o tráfico está cada vez mais ousado. Em alguns pontos da cidade as falsas blitze são corriqueiras. Bandidos disfarçados param o trânsito e simulam uma operação policial. “Morro de medo de ser pego fardado pelos traficantes numa blitz”, admite um soldado do 23º BPM. Um major da PM contou que pisca os faróis ao subir o morro onde mora. É obrigado a dizer a senha “sou morador” para os vigias do tráfico autorizarem sua passagem. Ninguém desconfia de seu ganha pão. Outro policial conta que onde mora o toque de recolher é às 22 horas. “Subir ou descer depois disso é uma ação de alto risco.”

O soldado José, aquele cujos filhos são identificados como X-9 na favela, não visita sua avó paterna há anos. “Tenho saudades, mas não posso visitá-la. Nem meus filhos.” Um primo seu, traficante, o proibiu de aparecer por lá. Um colega de batalhão foi expulso do morro depois que os bandidos descobriram sua identidade. “Perdi minha casa, mas pelo menos não perdi a vida”, conforma-se o soldado Joaquim*. Traumatizado, ele passou a tomar dois calmantes por dia. Perdeu o porte de arma, não dorme direito e ainda não sabe quando voltará a viver sem medo. “Talvez nunca mais.”

Falha geral – O cabo Ricardo Montalbo, 32 anos, entrou na PM paulista em 1990 e, há três anos, ficou tetraplégico ao receber um tiro no pescoço. Numa madrugada de agosto de 1993, estava em uma viatura na divisa de Francisco Morato, junto com outro policial. No patrulhamento, cruzaram com o tenente Mailar, que voltava para casa. Ao avistar o carro da polícia, um homem entrou correndo num matagal. Os PMs foram atrás. O tenente Mailar foi morto com uma machadada e Montalbo ficou tetraplégico. Mais um na estatística que já conta 1.800 PMs deficientes físicos no Estado. O soldado Renato* tem 37 anos, está na PM há 18 e faz patrulhamento da Força Tática em uma cidade da grande São Paulo. “Os policiais militares estão muito apreensivos. Os bandidos estão mais bem armados do que a polícia. O colete à prova de balas deles é melhor e mais resistente do que o da PM. Enquanto a gente porta revólver 38, eles exibem as potentes pistolas 9 milímetros e 45, armas proibidas para o nosso uso,” compara. O soldado revela: “As áreas da periferia, onde a criminalidade se destaca, estão descobertas. Muitos policiais estão evitando chegar no local do crime com rapidez, pois quem fere ou mata um bandido é transferido de sua área para a região central e isso acarreta prejuízo, como o afastamento da família e a perda do bico”, afirmou o PM.

Casado, pai de duas meninas, Renato faz uma reflexão sobre a realidade pouco animadora. “A PM não está desenvolvendo seu papel constitucional, que é atuar de forma ostensiva, preventiva e repressiva no combate ao crime.” E dá nome aos culpados: “O governador, o secretário de Segurança Pública e a cúpula da PM estão concentrando o maior número de policiais e viaturas nas regiões centrais, aquelas de maior poder aquisitivo, só para dar a impressão de que a polícia está nas ruas. Enquanto isso, a periferia, onde a criminalidade é maior, está descoberta.” O quadro de medo e incompetência assumido por quem deveria enfrentar os criminosos é assustador. Já passou da hora de os governos acharem uma solução, revendo toda a política de segurança pública.