"Vocês querem os favores dos EUA. Eu quero apenas os favores de Deus!” Com essas palavras, o mulá Mohammed Omar, líder do Taleban, despediu-se da delegação paquistanesa encarregada de transmitir o ultimato americano para que o Afeganistão entregasse Osama Bin Laden. O fundamentalismo islâmico estrutura-se em torno da antiga noção da umma – a comunidade dos fiéis unidos pela obediência ao Corão. A umma representou o vetor da expansão medieval muçulmana na Ásia Meridional e Central, Norte da África e Sul da Europa. O advento do nacionalismo contemporâneo dissolveu a umma, instalando os Estados territorialmente delimitados.

Mas o fracasso dos regimes modernizantes no mundo muçulmano propiciou o renascimento do fundamentalismo, cujas bases foram formuladas por Sayyid Qutb na obra Sinalizações na estrada, de 1964. Qutb anunciou o esgotamento do nacionalismo e o fim da liderança da civilização ocidental. Teria chegado a hora do Islã. Em 1990, Samuel Huntington escreveu O choque de civilizações, um cenário no qual os Estados seriam envolvidos em conjuntos culturais conflitivos. O Ocidente e o Islã emergiriam como pólos opostos do principal eixo de “choque entre civilizações”. Ele acreditou que a geopolítica pode ser deduzida a partir das estruturas culturais que moldam as civilizações. Ignorou a trama complexa de interesses dos Estados e a força dos nacionalismos.

A reação da administração Bush aos atos terroristas retirou Huntington do merecido esquecimento. O presidente classificou os ataques como uma declaração de guerra aos “valores da civilização ocidental” e utilizou o termo “cruzada” para definir a ofensiva americana contra o terror. A “cruzada” durou apenas dois dias – o suficiente para desencadear ondas de agressões a muçulmanos nos EUA e desesperar líderes aliados da hiperpotência na Europa e no mundo islâmico. Um alto funcionário britânico alertou que a Europa não queria desencadear um “choque de civilizações” e alguém deve ter sussurrado nos ouvidos de Bush que esse programa é, precisamente, o de Osama Bin Laden. Então, a Casa Branca engajou-se numa mobilização diplomática para erguer uma “coalizão mundial” contra o terror. Os Estados árabes e islâmicos são os parceiros mais cobiçados para a projetada coalizão.

Entre a umma e o Estado – No mapa do mundo, o Islã configura um crescente cujos pontos extremos são a Argélia, na África do Norte, o Cazaquistão, na Ásia Central, e a Indonésia, no Sudeste Asiático. Por todo o crescente islâmico, uma rede de equilíbrios precários sustenta os Estados. A pressão dos EUA para alinhar os regimes políticos à “guerra contra o terror” ameaça dissolver a ordem vigente. O Paquistão é o exemplo mais evidente. Na ânsia de atender às exigências americanas, enfrenta manifestações populares dirigidas pela oposição islâmica. O Paquistão e a vizinha Índia mantêm um conflito regional, apimentado por arsenais nucleares.

Osama Bin Laden é de origem saudita. Construiu a sua rede terrorista a partir da guerra dos mujahedin afegãos contra a ocupação soviética, na década de 1980. A vitória dos mujahedin tornou-se, no mundo islâmico, o marco maior do renascimento da umma. Bin Laden deixou, em definitivo, a Arábia Saudita após a guerra do Golfo, de 1991, acusando a monarquia saudita de permitir a profanação dos lugares santos, pela presença de tropas americanas no solo do Islã. A monarquia saudita, islâmica e absolutista, é um regime pró-ocidental, assentado sobre as rendas petrolíferas. Bin Laden e sua rede terrorista são financiados por famílias milionárias da elite saudita. A monarquia faz vista grossa, pois conhece a fragilidade do seu próprio poder. A pressão americana para que ela interrompa o fluxo de dinheiro que irriga o terror ameaça a estabilidade do Estado saudita.

Quando as torres gêmeas do World Trade Center desabavam, o primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, apressou-se em identificar Yasser Arafat a Osama Bin Laden. Arafat correu para, diante das câmeras, doar sangue às vitimas dos ataques. A sua Autoridade Palestina é um regime nacionalista e laico, que administra territórios sob ocupação israelense onde atuam grupos fundamentalistas como o Hamas e a Jihad Islâmica. As ações de terror desses grupos têm como alvo o Estado de Israel e são percebidas pelos palestinos como dimensões da luta legítima de libertação nacional. Algo semelhante ocorre com o Hezbollah, financiado pelo Irã e protegido pela Síria, cujas bases encontram-se no Líbano. Arafat não pode suprimir o Hamas ou a Jihad Islâmica, pois isso equivaleria, aos olhos dos palestinos, a associar-se com Israel. O Irã, a Síria e o Líbano não abrirão mão do Hezbollah enquanto Israel ocupar territórios palestinos. O Egito, aliado dos EUA, reprime os seus próprios fundamentalistas, mas não se arrisca a apoiar ações decisivas contra organizações que lutam pelos direitos nacionais dos palestinos.

O Irã, Estado islâmico criado pela revolução xiita de 1979, é inimigo do Taleban afegão e condenou o terror de Bin Laden, mas não classifica como terroristas as organizações que combatem Israel ou os grupos fundamentalistas de oposição ao regime pró-ocidental do Egito. O regime nacionalista de Saddam Hussein, no Iraque, inimigo jurado dos EUA, teme o fundamentalismo islâmico, pois os xiitas iraquianos formam uma maioria populacional excluída do poder.

A umma e o Estado territorial são pólos excludentes nos planos da teoria e da lógica. Mas a política internacional não se move nesses planos. Na prática, o fundamentalismo islâmico desdobrou-se em movimentos singulares, cujas identidades foram moldadas pelos conflitos específicos das nações árabes e muçulmanas. Bush insiste em conclamar a guerra contra os “terroristas sem pátria”, mas as organizações fundamentalistas têm pátria. A principal exceção é Osama Bin Laden e a sua Al-Qaeda. Esses “guerreiros do Islã” são, verdadeiramente, internacionalistas.

Um cartoon recente mostra caças americanos perseguindo um evasivo tapete voador, no qual viaja Bin Laden. Montar uma “coalizão mundial” contra o homem do tapete voador não seria difícil. Mas Bush comprometeu-se com uma guerra de extermínio contra todo o terror. Essa definição do inimigo inviabiliza a pretendida coalizão e condena o empreendimento ao fracasso.

Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e editor do jornal Mundo