Uma semana depois do ataque terrorista de 11 de setembro, os escombros do World Trade Center ainda estavam em chamas. O fogo que ardia naquilo que um dia foi o subterrâneo dos dois maiores prédios da cidade dificultava o trabalho dos bombeiros e consumia as últimas esperanças de que fossem encontrados sobreviventes da catástrofe. No coração americano também queimava o desejo de vingança. Mas no restante do mundo o apoio à guerra esfriava. A coalizão construída a toque de caixa pelo governo de George W. Bush mostrava falhas estruturais capazes de fazê-la implodir. Quando o presidente da França, Jacques Chirac, chegou a Washington na terça-feira 18, numa visita marcada anteriormente, já se sabia que a torre de babel guerreira arquitetada pelos seus anfitriões dificilmente teria o tamanho desejado. Nada de reprise para a aliança que o outro Bush, o pai, formou contra o Iraque em 1990. Chirac manifestou suas simpatias pelo drama americano, mas deixou claro que sua adesão a investidas militares no Afeganistão e no Oriente Médio seria muito limitada e cheia de condições. Ele resumia não apenas o estado de espírito francês, mas da maioria dos membros da União Européia, com exceção do Reino Unido. Sintomaticamente, até o nome escolhido para a operação militar – “Justiça Infinita” – deverá ser alterado para não “ ofender a fé islâmica”.

Para emperrar ainda mais a investida guerreira, dentro do próprio governo Bush grupos rivais lutavam para impor distintas estratégias. De um lado, os linha-duras capitaneados pelo subsecretário da Defesa, Paul Wolfowitz, forçando pela ampliação do teatro de operações: de Cabul a Bagdá, punindo também Saddam Hussein.

Em outra trincheira estava o Secretário de Estado, general Colin Powell, delineando uma área, a princípio, bem menor de ação, sempre sob o guarda-chuva de uma coalizão internacional. Por enquanto, o general parece estar ganhando a parada. No duro discurso que fez na noite de quinta-feira 20, em sessão conjunta do Congresso, o presidente deu um ultimato diretamente ao Taleban, a milícia de fanáticos que governa o Afeganistão, para que entregasse os líderes do movimento de Osama Bin Laden. Em tom de ameaça velada, Bush alertou que os países “ou estão conosco ou estão com os terroristas”. Disse também que este será um conflito não-convencional, e que deve demorar anos. De todo modo, não deixou dúvidas de que liberou seus cães de guerra.

NY lembra Cabul – O cheiro desta guerra já poderia ser sentido em todo o país. Em nenhum outro ponto ele se manifestava mais intensamente do que em Nova York. Quando o vento que vinha do norte inverteu a direção, a cidade foi invadida pela fumaça dos destroços do World Trade Center. Em vários pontos o cheiro da queima de combustível, madeira, concreto, plástico, vidro e carne humana entrava pelas narinas das pessoas. Era o aroma característico das cidades bombardeadas, com o qual os afegãos convivem há mais de 20 anos. Os cerca de 65 mil m2 de destruição na parte sul de Manhattan também lembravam partes da devastada Cabul. Os quase dois milhões de toneladas de entulhos resultantes das quedas de três prédios e partes de outros três são retirados em trabalho contínuo por uma superfrota de caminhões. “Estou trabalhando em turno de 48 horas seguidas, com intervalos de apenas seis horas para dormir e comer”, disse a ISTOÉ o caminhoneiro Gregori Arpino. “No meio do entulho, existem muitas partes humanas que se confundem com as ruínas”, diz Tim Ferguson, do IML local. Somente no WTC morreram ou estão desaparecidas 6.333 pessoas, com quase o mesmo número de feridos. No Pentágono foram 200 mortos e 800 feridos, além dos passageiros e tripulações dos quatro aviões sequestrados.

Perto do marco zero do atentado nova-iorquino está Wall Street e a Bolsa de Valores. O desastre que parou as operações desde o fatídico 11 de setembro teve efeito catastrófico também no pregão. Na reabertura da Bolsa, na segunda-feira 17, as cotações sofreram a pior baixa pós-paralisação desde 1929. E foi ladeira abaixo por toda a semana: na quinta-feira 20 a queda tinha sido de 4,37%. E as empresas aéreas devem demitir cerca de 100 mil funcionários. Nem todos, porém, tiveram prejuízos. Como em toda guerra, há quem lucre com a tragédia. A Comissão de Valores dos EUA e o FBI descobriram uma trama que rendeu fortunas aos cofres de terroristas e seus aliados. Numa operação de mercado futuro, onde se aposta na queda ou alta de certas ações, com data prevista, alguns investidores faturaram cerca de meio bilhão de dólares. Uma semana antes do atentado, eles apostaram contra as ações de companhias aéreas, de seguros e de empresas hoteleiras. ISTOÉ apurou que alguns dos operadores que viabilizaram o negócio são suspeitos há muito tempo de trabalhar para a organização de Osama Bin Laden, e outros para o governo do Iraque. “A Morgan Stanley (uma das maiores corretoras americanas) recebeu 134 ‘puts’ (apostas no mercado futuro) de investidores que o FBI suspeita terem conexões com Bagdá”, disse a ISTOÉ John Wilker, membro da Comissão de Valores. Sabe-se também que empresas ligadas ao saudita venderam todas as ações de companhias de seguro que tinham em Munique, Londres e Tóquio.

A associação entre Osama Bin Laden e Saddam Hussein, já apurada por ISTOÉ, sabe-se agora, é antiga. “A partir de 1998 recebemos informes de que Bin Laden se hospedou seguidas vezes nos palácios de Saddam no Iraque”, diz Frank Ricce, ex-chefe do escritório regional do FBI em Nova York. Uma fita de vídeo, conseguida pela CIA depois do atentado ao destróier USS Cole, no ano passado, mostra o terrorista Mohammed Atta – que estava no comando do primeiro avião a atingir as torres do WTC – conversando com um dos chefes do aparato de inteligência do Iraque. Os investigadores consideram que Atta era um dos líderes da complexa operação que atingiu Nova York, Washington e a Pensilvânia. Assim, vários membros do governo Bush se mostram intransigentes com relação ao ditador iraquiano. Além do subsecretário de Defesa, Paul Wolfowitz, o chefe de gabinete da vice-presidência, Lewis Libby, também faz parte do coro forte que pede o sangue de Saddam. Mas os pesos pesados do governo, como o próprio secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, mesmo rangendo os dentes e torcendo o nariz, apoiou a estratégia do secretário de Estado, Colin Powell, de concentrar o fogo inicial no Afeganistão em Osama Bin Laden, construindo com paciência a rede de apoio internacional que ainda não está implantada com segurança. Esta linha de ação acabou ganhando a adesão momentânea do todo-poderoso vice-presidente Dick Cheney. A batalha do general Powell estava ganha, ainda que a guerra interna estivesse longe de terminar.

Saddam, de novo – Esta luta palaciana é típica de Washington. Em especial da Casa Branca de Bush, onde Colin Powell era considerado um “MIA” (iniciais em inglês de “desaparecido em ação”, no jargão militar) pela mídia americana, devido a sua performance apagada. As escaramuças estão em toda parte. Por exemplo: o vice-presidente Cheney, que agora apóia a corrente mais comedida nesta nova frente de guerra, passou toda a semana mencionando Saddam Hussein como um dos possíveis alvos da ira ianque e parou perto de acusar o ditador do Iraque de ter participação ativa nos atentados. Cheney também é um dos controladores de um influente grupo de pensadores conservadores de Washington, chamado American Enterprise Institute.

O instituto vem defendendo há tempos a teoria de que Saddam Hussein estaria também por trás dos atentados realizados em 1998 contra as embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia. Uma das vozes mais ativas da bancada de acusações do American Enterprise é Laurie Mylroie, que tem relações estreitas com Dick Cheney. Ela assinou um artigo no jornal Wall Street Journal afirmando com todas as letras que o Iraque era comparsa de Bin Laden nos ataques do dia 11. “Os órgãos de inteligência de vários países já reuniram provas de que Saddam Hussein forneceu logística e financiou as operações de Bin Laden. O problema é que o governo anterior e mesmo esta administração até agora temeram muito investir contra o Iraque. Uma ação dessas seria muito malvista por Estados árabes aliados dos EUA e poderia complicar muito a situação na questão de Israel e Palestina, além de provocar a ira de todo o mundo muçulmano. Acontece que a guerra chegou às nossas portas e não haverá paz enquanto gente como Saddam e Osama não for eliminada”, disse Mylroie a ISTOÉ. A análise, pelo menos parcialmente, acerta na mosca. Os países árabes já mostraram que não estão nem um pouco inclinados a aceitar novos ataques ao Iraque. Mesmo a Europa é contra ações americanas no país. A França já estabeleceu pontes de contato com Bagdá, e a Rússia fez o mesmo. Existe ainda o medo bastante real de que os ataques a Osama e Saddam acabem desestabilizando os regimes de todos os países árabes aliados de Washington na região.

“Efeito estufa” – O apoio ao endurecimento da política americana pelos governos da Arábia Saudita, Jordânia, Kuait, Emirados Árabes Unidos, entre outros, seria capaz de virar a população contra as monarquias que regem aqueles países. “Imagine se os radicais muçulmanos conseguirem estabelecer governos em todas estas nações. Eles são bem capazes de colocar fogo naquele enorme barril de petróleo que são os países do Golfo, como fez Saddam no Kuait. Aí, sim, teríamos um efeito estufa capaz de colocar o homem na lista de animais em extinção”, diz James Woolsey, ex-diretor da CIA no governo Clinton, e um dos que apontam o dedo para Saddam nestes atentados.

O governo Bush trabalha com essas hipóteses. Já teve uma mostra do que poderá ser um futuro de revoltas no mundo muçulmano. Na quarta-feira 19, o general Pervez Musharraf, ditador militar do Paquistão, foi obrigado a ir à tevê explicar ao povo seu apoio aos EUA na caça a Osama. Em várias cidades do país, multidões iradas fizeram demonstrações violentas de revolta. “Para muita gente no Paquistão, Bin Laden é um herói. Além disso, ele tem muita ascendência sobre grupos políticos fortes do país”, diz Assef Ahmad Ali, ex-ministro das Relações Exteriores do país. O general Musharraf foi obrigado a mentir, distorcer fatos e implorar: “Confiem em mim.” Não teve sucesso. O medo nos EUA, na Europa e na Ásia é que os radicais muçulmanos derrubem o general Musharraf e fundem mais uma república islâmica no mundo. E esta teria capacidade nuclear. “Daí para um apocalipse atômico seria apenas um passo: o Paquistão bombardeia a Índia, que revida, e nós corremos o risco de voltar à Idade da Pedra”, diz Woolsey. Mas, como alertou Bush, esta será uma guerra longa, onde, além de armas, serão usadas também as estratégias da diplomacia. Do perfeito equilíbrio destas medidas depende o futuro da humanidade.

FHC não quer só alinhamento

Leonel Rocha

Os atentados detonaram uma discussão no governo sobre o papel que devem ter os fóruns como ONU, OEA e Otan. FHC tem revelado a auxiliares que o mundo deve refletir sobre o funcionamento dos blocos regionais, a hegemonia econômica e militar americana e até o papel da globalização que deixou de fora a África. A hegemonia dos EUA, segundo o presidente, “tem que ser compartilhada para que não haja simplesmente um alinhamento automático”. O ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer, em Washington, propôs que a OEA discuta o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar). Aplicá-lo, segundo o Itamaraty, não significa que o Brasil vá enviar tropas. O Tiar obriga os 23 países do continente à cooperação militar em caso de ataque externo a um dos signatários. Os militares brasileiros consideram o Tiar um tratado ultrapassado e não querem o alinhamento automático. Lembram que os EUA foram contra a aplicação da assistência recíproca pedida pela Argentina contra a Inglaterra na guerra das Malvinas.

Rabino Sobel provoca polêmica

Kátia Mello

Enquanto o mundo não se livrar destas bestas humanas que não dão o mínimo valor à vida, não haverá lugar no planeta em que se possa viver com segurança.” A frase controversa, referindo-se aos terroristas que atacaram os EUA, não foi proferida por nenhum estadista, mas por um rabino durante a cerimônia de comemoração do Rosh Hashaná, o ano-novo judaico. Estava na prédica proferida pelo rabino Henry I. Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista (CIP), na segunda-feira 17 em São Paulo. Sobel disse também que oferecer a outra face, como pregam os cristãos, pode ser desastroso. “É fechar os olhos à gravidade do mal, é esquecer o fato de que há indivíduos e grupos que sentem prazer em destruir vidas humanas.” Alguns religiosos não gostaram do discurso de Sobel. Para o sheik Jihad Hassan Hammadeh, “o rabino deveria estar pregando a justiça e não a força bruta”.

“Hoje em dia, um turbante virou alvo”

Kátia Mello

A religião sikh não endossa o determinismo de castas sociais do hinduísmo. Mas acredita em fatalidades do destino. Pegue-se o exemplo de Maghhattar Singh, um imigrante da região do Punjab, na Índia. Seus 38 anos foram marcados por perseguições, políticas ou raciais. Há seis anos foi obrigado a pedir asilo nos EUA, pois as pressões dos agentes do governo de seu país apontavam para um desfecho de encarceramento. O clima em toda a província onde nasceu sempre foi para lá de hostil aos fiéis sikhs. Maghhattar arrumou as malas e foi fazer a América. O que implica 13 horas diárias pelas ruas de Nova York, atrás do volante de um táxi, como é o destino de seus conterrâneos. Em pouco tempo, descobriu que naquela terra existem castas rigidamente estabelecidas: no estrato mais alto estão os anglo-saxões. Abaixo desta escala vêm os outros cidadãos estratificados de acordo com a tonalidade de suas peles e costumes particulares. Nos EUA Maghhattar continuaria carregando o mesmo fardo da rejeição. E, depois dos atentados de 11 de setembro, o peso desta carga poderá custar-lhe a vida.

Pouco mais de uma semana depois dos ataques de terroristas ao território americano, nada menos do que 500 casos de violência foram cometidos contra pessoas e instituições de origem árabe, ou que vagamente “pareciam árabes”. E os sikhs têm sido vítimas em número desproporcional nesta guerra santa do racismo e falta de informação popular. As evidências da suposta culpabilidade desta etnia estão na cara: por exigência religiosa, eles usam barba, não cortam o cabelo e usam turbantes. Não importa que seus turbantes vistosos de seda sejam totalmente diferentes daqueles usados por afegãos e árabes: quem “usa toalha na cabeça”, na paranóia popular, é terrorista. “A ignorância leva ao preconceito, e torna ainda mais injustos estes atos”, diz Bhairavi Desai, a líder da Lease Drivers Coalition, organização que reúne parte dos 25 mil taxistas de Nova York. Ela, assim como Maghhattar, está em posição exemplar para entender esta equação: é sikh, apesar de ter nascido e vivido todos os seus 29 anos em Nova Jersey.

Os sikhs formam uma comunidade de cerca de 500 mil pessoas nos EUA. Uma minoria, cuja religião, diga-se, é a quinta maior do mundo. Em Nova York, o nicho profissional que ocupam é o de taxistas. “Dos 25 mil motoristas de táxi da cidade, aproximadamente 14 mil são oriundos do subcontinente indiano (Paquistão, Índia e Bangladesh)”, diz Bhairavi. “A discriminação que estes motoristas sofrem já era insuportável, mas depois dos atentados se tornou mortal”, diz. Maghhattar tem sentido na pele esse fenômeno. “No dia do ataque eu estava no Queens, perto de onde moro. Comecei a fazer lotação com as pessoas traumatizadas que chegavam de Manhattan. Não cobrei as corridas e tive prejuízos, mas queria servir a comunidade do melhor modo. Mesmo assim, já na primeira corrida do dia seguinte, um passageiro cuspiu em minha cara e me chamou de árabe imundo, além de me ameaçar de morte. Horas mais tarde, fui assaltado e só não me mataram porque eu consegui dizer que era da Índia e não tinha nada a ver com isso. Desde então, tenho sofrido todo tipo de agressões. As pessoas até tentam tirar o turbante de nossas cabeças”, diz Maghhattar.

E, considerando os eventos no resto do país, até que o taxista de Nova York tem dado sorte. Na cidade de Meza, no Arizona, um sikh dono de posto de gasolina foi morto com um tiro quando ajeitava o jardim de sua propriedade. Ele estava junto a quatro mexicanos, que não sofreram agressão. O assassino, Frank Roque, ainda teve tempo de ir a outro posto e ferir gravemente um atendente libanês. No subúrbio de Dallas, outro sikh, de 70 anos, quase teve sua barba incendiada por um grupo de “vingadores patriotas”. Só foi salvo pelo fato de que o piromaníaco ateou fogo à própria mão lambuzada com combustível de isqueiro. A polícia chegou a tempo de evitar tragédia maior. “Estas pessoas não conhecem nada do mundo. Muitos americanos nem sequer conhecem as particularidades de seu país. É por isso que vêem o mundo de forma distorcida”, diz Maghhattar. “Hoje em dia, um turbante virou alvo”, completa.