A discussão sobre os direitos de propriedade intelectual e a preservação do conhecimento deixou a tribuna acadêmica e invadiu a selva. Os cientistas uniram-se aos líderes indígenas para reagir contra uma prática cada vez mais corriqueira entre empresas estrangeiras de biotecnologia e farmacêutica. Elas saem do Brasil com amostras de plantas, frutos e animais para produzir novas drogas e encher os bolsos de dinheiro com matéria-prima nacional. Curandeiro e líder espiritual, o pajé evita sair da tribo para não perder seus poderes. Na semana passada, porém, representantes indígenas decidiram que em dezembro vão arrastar os pajés de 20 tribos e reuni-los numa espécie de convenção de druidas. Pretendem elaborar um banco de dados dos saberes nativos. A idéia é copiar um projeto venezuelano, que em três anos catalogou nove mil referências naturais – cinco mil sobre plantas medicinais – e criou um mapa de sua biodiversidade, a maior riqueza de uma nação.

“O pajé está mais preocupado com o bem-estar da comunidade do que com rentabilidade e patente, mas, já que a discussão é no campo econômico, o índio também quer ter sua cota”, resume Marcos Turuna, coordenador dos direitos indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) e um dos participantes do Seminário Internacional sobre o Papel da Proteção da Propriedade Intelectual no Campo da Biodiversidade e dos Conhecimentos Tradicionais, que aconteceu na semana passada em Manaus, sob o patrocínio da Comissão Européia e do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), responsável pelo registro de marcas e patentes em território nacional.

Santo Daime – O Brasil tem precedentes graves de biopirataria. O caso mais conhecido é o do físico Sérgio Ferreira, que depois de uma década de estudos descobriu uma substância no veneno da jararaca capaz de controlar a pressão arterial. Seu conhecimento virou produto de um laboratório estrangeiro, que fatura US$ 8 bilhões ao ano com a venda do anti-hipertensivo Capoten. Outro exemplo é o néctar da seita religiosa Santo Daime, a ayahuasca, planta medicinal igualmente patenteada por um laboratório multinacional. Assim como a espinheira-santa, erva usada por tribos da Amazônia para combater a acidez estomacal, que teve o mesmo destino: gerar lucros para empresas estrangeiras.

O baixo número de patentes solicitadas por brasileiros é um dos problemas apontados pela comunidade científica. E um dos motivos que justificam a vergonhosa presença do Brasil no 43º lugar em avanço tecnológico, segundo o relatório anual do Programa de Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas. O levantamento feito com 72 países analisa a expectativa média de vida, a taxa de alfabetização e, pela primeira vez, incluiu a capacidade de um país criar e usar novas tecnologias.

A formação de bons profissionais é requisito imprescindível para o avanço. Nesse quesito, o Brasil é mestre. Em 1987, 4.870 profissionais concluíram seus cursos de pós-graduação. No ano passado, esse total saltou para 23.718. A publicação de artigos científicos, outro termômetro de avaliação acadêmica, quintuplicou em 19 anos. Ficamos uma posição abaixo da Coréia do Sul. Na hora de transformar esse conhecimento em riqueza, os sul-coreanos dão um banho. Seus pedidos de patente nos EUA subiram de 449, em 1990, para 3.472, no ano passado. No mesmo período, nossos pedidos de registro passaram de 45 para pífios 113, em 2000.

Era digital – O relatório da ONU é categórico: a nação que falhar no uso da tecnologia tende a ficar à margem da economia mundial. Combinação entre a revolução digital e a globalização, a era das redes integrou mercados, derrubou fronteiras, criou elos entre pessoas dos quatro cantos do mundo. Para as empresas, seu benefício refletiu-se em produtividade e redução de custo, já que a internet uniu fornecedores, fábricas, distribuidores, bancos e clientes. Na prática, o acesso às inovações tecnológicas traduz-se em remédios mais eficientes, melhores meios de transporte, mais acesso à informação, aos telefones e à internet, além da superação dos obstáculos de isolamento social, econômico e geográfico. Da mesma forma como o motor a vapor e a eletricidade serviram de combustível para impulsionar a Revolução Industrial, os avanços da informática e da genética realçam o poder do cérebro, o bem mais valioso da atual era do conhecimento.

“Investir em inovação tecnológica traz produtividade às empresas e é crucial para o crescimento econômico”, diz o economista Gesner Oliveira, ex-presidente do Conselho Administrativo de Direito Econômico (Cade). Nosso calcanhar-de-aquiles é a falta de dinheiro para a pesquisa. Enquanto o Brasil aplicou ridículos 0,9% do Produto Interno Bruto (PIB) em pesquisa, os EUA investiram 2,7% e a Coréia do Sul, 2,5%. Os empresários reclamam que faltam incentivos. Pedem isenção de impostos, redução de tarifas e outros privilégios. O governo retruca dizendo que a verba da iniciativa privada precisa aumentar e que a inovação tecnológica nasce nas indústrias. “Não há mistério. É preciso ter incentivos fiscais, capital de risco e sistemas de aquisições prioritárias, em que o governo se compromete a comprar de empresas brasileiras, mesmo quando há uma pequena diferença de preço”, afirma Glaci Zancan, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Refém – O problema é que o Brasil continua refém das importações de peças e produtos tecnológicos. Pesquisa coordenada pela economista Virene Matesco, da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, ilustra essa dependência. Nos últimos 11 anos, o País gastou US$ 11,6 bilhões em pagamentos pelo uso de tecnologias e marcas desenvolvidas e patenteadas no Exterior. O Brasil vendeu US$ 2,8 bilhões em tecnologia puro sangue. É um prejuízo de US$ 8,8 bilhões para os cofres nacionais e um peso extra na desequilibrada balança comercial. “Há um verdadeiro fosso tecnológico em relação aos países desenvolvidos”, diz a economista.

O Ministério da Ciência e Tecnologia pretende debater essa e outras questões polêmicas durante a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, que acontece em Brasília entre 18 e 21 de setembro. Dali sairão as diretrizes para nortear a política científica e tecnológica da próxima década. O Ministério usa como bússola o Livro verde, uma radiografia de 278 páginas elaborada por mais de uma centena de especialistas. “Não é só o dinheiro que vai embora para os países ricos. Há uma evasão de tecnologia e conhecimento, que preparam terreno para a geração futura de riquezas”, diz Richard Herson, economista e co-autor de um estudo elaborado pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) para avaliar o grau de adesão digital dos brasileiros. O resultado é desanimador: menos de sete milhões (4%) de pessoas usam a internet e 66 milhões de brasileiros estão condenados à exclusão digital. Enquanto nos EUA mais da metade da população está plugada na internet, na América Latina e nos países do Caribe só 3,2% da população estão online.

Nas nações onde há automação e a microeletrônica está disseminada, ocorrem dois fenômenos: a expansão e a consolidação de novos setores da indústria e o uso das inovações em outras atividades econômicas, inclusive aquelas ditas da velha economia. “Nossa produção acadêmica é respeitável, mas ninguém se habilita a transformá-la em faturamento. O empresário nacional não tem cultura da inovação nem incentivos”, afirma José Miguel Chadad, diretor da Associação Nacional de Pesquisa, Desenvolvimento e Engenharia de Empresas Inovadoras (Anpei). Há ainda outra distorção. “Por aqui, as empresas entram com 30% do investimento em pesquisa, enquanto o governo arca com o resto. É o oposto dos EUA, Japão, França e Coréia do Sul”, diz Chadad.

“Boa parte dos investimentos feitos no Brasil durante a segunda metade dos anos 90 foi destinada à compra de empresas”, diz a economista Suely Muniz, que escreveu com o colega Carlos da Silveira uma tese sobre investimento e capacitação tecnológica. “Os setores que mais cresceram foram os serviços de consultoria em energia, finanças, telecomunicações e comércio”, afirma Suely. Só um quarto do investimento foi usado para expandir as instalações brasileiras; os demais 75% foram usados nas fusões, privatizações e aquisições.

Contam-se nos dedos as honrosas exceções de êxito tecnológico, como a indústria aeronáutica Embraer, a prospecção da Petrobras em águas profundas e o cultivo de novas variedades agrícolas. Sem contar o avanço da genética, patrocinado pelos US$ 50 milhões que desde 1997 a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) aplica na pesquisa para desvendar a sequência genética de microrganismos causadores de doenças e pragas agrícolas. O País brilha igualmente no estudo dos genes do câncer.

Estratégias para aproveitar esse conhecimento são tão importantes quanto os investimentos. “Não é só por causa do dinheiro que os EUA são o que são. Eles têm uma política integrada de estímulos e isso exige capacidade do governo de articular interesses”, observa o professor José Eduardo Cassiolato, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), bloco dos países mais ricos do mundo, revelam que mais da metade (55%) da riqueza mundial já advém do conhecimento e dos bens ou produtos intangíveis. São programas de computador, patentes, direitos autorais, serviços de consultoria e bens culturais. O primeiro passo é valorizar a prata da casa: os cérebros brasileiros. Não importa se usam beca ou ostentam um cocar na cabeça. 

Colaboraram: Aziz Filho e Liana Melo (RJ),
Henrique Fruet e Valéria Propato (SP)