Karen Worcman, historiadora e linguista carioca, tem uma qualidade rara. Ela ouve, e muito, as pessoas. Embora também se empolgue na hora de falar. Descobriu a vocação para escutar histórias em meados da década de 80, quando se dedicou a gravar 200 horas de depoimentos dos membros da comunidade judaica no Rio de Janeiro. Na ocasião, uma senhora de 86 anos, logo após contar episódios de sua vida, comentou: “Quero te agradecer, já posso morrer em paz.” Karen percebeu que lidava com uma matéria-prima valiosa. Naquele momento teve o estalo para criar em São Paulo o inusitado Museu da Pessoa, que, através de depoimentos anônimos em tons biográficos, vem registrando de maneira informal a história não oficial do Brasil, principalmente da capital paulista. “A memória é o pilar de nossa identidade, é a única coisa que, se perdermos, temos que recomeçar do zero”, diz Karen, que, como diretora do museu, também transformou a idéia num empreendimento lucrativo. Em 2000, por exemplo, a entidade faturou R$ 1 milhão. Neste ano, pode chegar ao dobro catalogando clientes tão díspares como o São Paulo Futebol Clube e a Confederação Nacional dos Metalúrgicos.

Mas o que mais chama a atenção no Museu da Pessoa, instalado num iluminado sobrado na Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo, nada tem a ver com interesses comerciais. São os 2.200 depoimentos espontâneos, coletados em vídeo e áudio digital – depois passados para computador –, de um público em sua esmagadora maioria com mais de 60 anos. No sábado 8, por exemplo, Nelson Moraes Barros, 79 anos, contou que desenvolveu na sua horta um gigantesco pé de couve. Para provar, levou as fotos. Barros guarda uma biografia interessante, não só pelas proezas agrícolas. Teve uma infância paupérrima, seguiu carreira na Polícia Militar e se transformou em poeta autodidata. No seu depoimento recitou versos em homenagem a um de seus bezerros.

Tipos como Barros comprovam que qualquer pessoa pode contar uma boa história. E é curioso notar como elas se sentem felizes diante dos entrevistadores. “É um impacto na auto-estima, todos ficam com uma sensação de eternidade, como se a vida estivesse sacralizada”, conta Karen. Durante os depoimentos, que chegam a durar dez horas, em duas sessões, alguns choram ou entram num processo de catarse. Mas principalmente redescobrem fatos escondidos na memória. Certa vez, uma senhora disse que de repente começou a sentir o cheiro de flores e de pratos de sua infância. Para extrair a melhor conversa, a equipe do museu – constituída de 15 pessoas fixas, que podem chegar a 40, de acordo com o volume de trabalho – é treinada para desmontar os que chegam com discursos prontos. “Geralmente são os mais famosos”, segreda a diretora. A intenção não é tornar a entrevista uma sessão de análise ou de confessionário, e sim reavivar a memória da pessoa com detalhes aparentemente banais, como a descrição da mobília da casa na qual ela passou a infância. Na narrativa de um depoente, a memória é como um novelo de lã. Basta puxar um fio.

Cada história é registrada não apenas em áudio, vídeo e computador. Os depoentes também são eternizados em pastas de plástico, onde estão guardados seus dados biográficos principais e algumas fotos. A partir do início de 2002, todo o material biográfico estará disponível num enorme portal criado pelo museu na internet, que possibilitará um imenso cruzamento de informações. O curioso é que a coleta nunca pára. Além da equipe fixa, o Museu da Pessoa conta com a contribuição de um grupo de idosos no papel de “agentes da história”. Eles próprios deram seus depoimentos. Ficaram tão empolgados que aprenderam os métodos das entrevistas e hoje também são entrevistadores. Numa dessas conversas, a secretária aposentada e atual “agente da história”, Bemvinda Motta Nogueira Santos, contou que durante toda a juventude ouviu o conselho da mãe para jamais casar com um mineiro. “Ela falava que quando o mineiro era bom, era bom, mas quando não, era melhor jogar fora.” Adivinhem com quem ela se casou?

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