Rafael Miranda não sabe ao certo se foram dois, quatro ou seis metros. Só tem certeza de que voou. O deslocamento de ar provocado pelo morteiro que explodiu a poucos metros de onde ele estava arremessou seu corpo com violência. Rafael caiu batendo com a cabeça sobre o cabo do rifle AK-74. “Não desmaiei, não senti dor, não ouvi nada”, conta ele. “Só percebi que algo estava errado quando tentei correr para me jogar na trincheira”. Apesar do esforço, ele não conseguia se movimentar. Não sentia qualquer coisa da cintura para baixo. “Achei que os estilhaços do morteiro tinham me partido ao meio, que eu estava sem as pernas”. Rafael já havia visto cenas semelhantes: pessoas com ferimentos graves, estraçalhadas, mas sem dor por conta da brutal descarga de adrenalina. “Fiquei com medo de olhar para minhas pernas”, diz. “Coloquei a cabeça sobre o rifle, fechei os olhos e esperei que uma bomba me acertasse. Tinha certeza que ia morrer ali”. 

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AÇÃO
O ex-segurança privado Rodolfo Magaiver realiza treinamento a poucos
quilômetros do front de batalha em Pervomias’k, Leste da Ucrânia

Tudo aconteceu muito rápido. Fazia frio na manhã de 18 de janeiro e as ruas da pequena cidade litorânea de Shirokino, no Sudeste da Ucrânia, estavam cobertas pela neve da noite anterior. Rafael e dezenas de outros soldados estrangeiros da Unité Continentale, um batalhão formado por voluntários de diferentes países, avançavam sobre o centro de Shirokino. O ataque era uma etapa da nova tentativa de se aproximar de Mariupol, uma cidade de 500 mil habitantes fortemente defendida pelas forças armadas ucranianas, distante apenas 20 quilômetros dali. Se conquistassem Mariupol, os rebeldes pró-Rússia ampliariam ainda mais a faixa de domínio que haviam assegurado no Leste da Ucrânia e teriam acesso a um dos mais importantes parques siderúrgico do país. “Estava fácil, entramos na vila sem resistência”, relembra Rafael. “Mas aí, uma sirene começou a tocar. Até rimos. Duvidávamos que abririam fogo contra a cidade, contra os civis que estavam nos porões das casas”. A sirene ainda ecoava quando a tempestade de mísseis e morteiros despencou.

Resignado, Rafael seguia deitado sobre o rifle, esperando pela morte. Foi quando sentiu um tranco no pescoço e ao abrir os olhos já se viu dentro da trincheira. Tinha sido salvo por um soldado russo. Só então, Rafael tomou coragem de olhar para as pernas. Estavam lá, intactas, sem ferimentos ou qualquer marca de sangue. À sua volta, soldados feridos gritavam, outros pareciam mortos. “Pela primeira vez senti pavor”, conta Rafael. “Percebi que havia sido ferido nas costas e tive medo de ter ficado paraplégico. Só pensava em como ia contar para minha mãe o que tinha acontecido comigo tão longe de casa”.

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Rafael foi atingido por dois estilhaços de morteiro. Um deles perfurou seu pulmão esquerdo. O outro, pelo que ele conseguiu entender dos médicos russos que o atenderam, alojou-se a poucos milímetros de sua espinha dorsal. “Fui operado duas vezes, fiquei internado por quase dois meses e já consigo andar, ainda que mancando”, diz ele, sentado na cama de um quarto de hospital em Donetsk , no dia em que se preparava para receber alta. “Foi difícil, faltou comida e o tratamento não é o melhor, mas me sinto feliz. Estou aqui para lutar contra o imperialismo americano”, diz ele. Um dos colegas de quarto, notando a animação, saúda Rafael com o jargão antifascista da Guerra Civil Espanhola: “No passarán!”.

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Até seis meses atrás, Rafael jamais havia participado de um treinamento militar. Nem tiro com fuzil tinha dado em seus 26 anos de vida. Fez cursos de segurança privado e, quando mais novo, sonhava em se tornar boxeador profissional. Disputou apenas uma luta, e perdeu. Natural de Mauá, na região do ABC paulista, decidiu ir para a Ucrânia se aliar aos rebeldes no final do ano passado, logo após perder o emprego de segurança em uma empresa de São Paulo. Para sobreviver, passou parte da segunda metade de 2014 trabalhando como motoboy. “Sabe quando chega aquele momento em que nada dá mais certo, que você só quer sumir, desaparecer? Pois é, eu cheguei nesse momento”. Rafael acredita que há um complô formado por banqueiros, grandes empresas e magnatas judeus para impor ao mundo uma ordem marcada pela desigualdade e pela exploração dos mais fortes sobre os mais fracos.

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Rafael Miranda é parte de um crescente grupo de brasileiros que optaram por abandonar suas vidas para se juntar aos rebeldes apoiados pela Rússia que lutam pela independência desta região do Leste da Ucrânia conhecida como Donbass. Em março havia sete brasileiros de diferentes regiões do País – com diferentes objetivos e ainda mais diferentes motivações – lutando lado a lado com os separatistas.

O grupo é heterogêneo. Em março juntava perfis tão distintos quanto o de um soldado da Polícia Militar do Amazonas em licença não remunerada e o de um estudante de comunicação de uma universidade pública de Minas Gerais. Contava ainda com um ex-militante de esquerda do Sul do País, de pouco mais de 50 anos de idade, e seu filho, um estudante universitário de cerca de 20 anos. O pelotão de brasileiros é integrado também por um ex-cabo do exército que atuava como segurança privado em Presidente Prudente (SP) e que ficou desempregado após ser baleado na perna em um tiroteio. Em meados do mês passado, todos eram comandados por Rafael Lusvargui, um ex-soldado da Polícia Militar de São Paulo que foi preso durante as manifestações contra a Copa do Mundo na capital paulista em 2014.

Lusvargui foi o primeiro deles a ir para a Ucrânia se unir aos rebeldes. Chegou lá em setembro, logo após a perícia da polícia paulista comprovar que a caixinha de achocolatado líquido com a qual foi preso nas passeatas continha apenas uma mistura de leite, açúcar e chocolate em pó – e não material explosivo, como alegavam os policiais que o prenderam. “Comecei a postar as fotos das ações que eu participava aqui na Ucrânia e rapidamente um monte de gente entrou em contato, querendo ajudar os rebeldes. Nem eu esperava por isso”, conta Lusvargui, que se considera eslavo, já havia morado na Rússia e fala russo com bastante desenvoltura.

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Rodolfo, ex-cabo do exército, de 27 anos, que trabalhava como segurança em Presidente Prudente (SP), chegou dois meses depois de Lusvargui. Ele, que prefere ser chamado de Magayver (“porque resolvo tudo”), conheceu Lusvargui por meio de uma página no Facebook de apoio aos separatistas. Criada pelo advogado carioca Raphael Machado, o grupo Frente Brasileira de Solidariedade com a Ucrânia se transformou em uma espécie de ponto de encontro e troca de informações de brasileiros que desejam fazer parte da guerra. Machado já tem mais de sete mil seguidores na página e diz que, em poucos meses, cerca de 150 pessoas o procuraram atrás de informações para entrarem na guerra.

“Eu segui as recomendações e deu tudo certo”, diz Rodolfo, o Magayver. “Vim para cá para ajudar as pessoas que estavam sofrendo”. Mas ele não nega que, desde a época do quartel, sonhava participar de combates reais. Magayver gosta da guerra.

A conexão Brasil-Donbass funciona de forma simples. Os brasileiros compram passagem para Moscou e lá são recebidos por uma pessoa ligada aos separatistas que os hospedam em um apartamento na capital russa. Em poucos dias, embarcam num ônibus com outros voluntários estrangeiros e russos, diretamente para Lugansk, uma das principais cidades da região separatista. Ali o grupo é recepcionado por Rafael Lusvargui e encaminhando de imediato para Pervomais’k, uma tenebrosa cidade fantasma que já foi habitada por 60 mil pessoas. Danificada pelos bombardeios e praticamente abandonada pela população civil, Pervomais’k é a porta para os combates – fica a menos de cinco quilômetros das trincheiras das forças armadas ucranianas. Rafael Lusvargui recebeu autorização do batalhão cossaco do qual faz parte para criar um pelotão de reconhecimento e sabotagem batizado de Unidade Internacionalista Ernesto “Che” Guevara. A expectativa é de que pelo menos seis novos brasileiros cheguem a Pervomais’k nas próximas semanas.

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A Guerra da Ucrânia é um conflito local com implicações mundiais e tem atraído uma miríade de combatentes de todo o mundo. A despeito dos detalhes regionais, para muitos, este é um combate entre Leste e Oeste. Uma espécie de batalha final da Guerra Fria que foi prorrogada por três décadas. “A Rússia ainda é um elemento importante no equilíbrio geopolítico mundial e os Estados Unidos e a União Europeia querem enfraquecê-la o máximo possível para serem hegemônicos”, diz o soldado da Polícia Militar do Amazonas que também luta ao lado dos rebeldes e não quer se identificar. Pede apenas para ser chamado de Al Hassan.


Ex-estudante de história, vivendo na Ucrânia há pouco mais de um mês, Hassan tem um perfil distinto do tradicional PM brasileiro. “É difícil ser policial militar, a PM é uma instituição reacionária, mas é um emprego”, diz. Ele foi para a Ucrânia em busca de experiência em combate militar. Acredita que, em algum momento, grupos armados de extrema esquerda possam ressurgir no Brasil e na América Latina em face à guinada à direita que muitos países ameaçam tomar. “Quero estar preparado para fazer parte deles”. Mas Hassan, assim como outros brasileiros do grupo na Ucrânia, está decepcionado. “Não há combate direto, é só artilharia. Você raramente vê o inimigo”, reclama.

Quando começou, a Guerra da Ucrânia parecia destinada a seguir as características dos conflitos atuais, como ocorre na Síria e no Iraque: forças assimétricas combatendo em ambiente urbano, utilizando táticas de guerrilha. No entanto, o farto equipamento militar disponível tanto para as forças armadas ucranianas quanto para os rebeldes fez com que rapidamente as batalhas ganhassem cores muito semelhantes às da 1º Guerra Mundial, com front definido e batalhas travadas basicamente por artilharia.

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Félix – outro nome fictício – nunca tinha pego uma arma na vida quando chegou na Ucrânia trazido por seu pai. O primeiro tiro foi dado em um rifle AK-74, durante os cinco dias de treinamento básico que todos os brasileiros recebem antes de ir para o front. Na terceira semana de março, Félix estava em um apartamento ocupado pelos soldados rebeldes na cidade de Pervomais’k, recuperando-se de um princípio de hipotermia. Ele não suportou as temperaturas negativas que enfrentou durante os cinco dias passados nas trincheiras. “A guerra de verdade é muito diferente do que a gente pensa, não tem nada a ver com o vídeo-game”, diz ele, singelamente. No Brasil, Félix gostava de jogar Call of Duty e Medal of Honor, dois bestsellers do mundo dos vídeo-games de guerra. “Mas eu não tenho ideologia, não gosto de nenhuma ideologia política”.

Já o pai de Félix se apresenta como um ideólogo. Alberto – nome também fictício – passou a vida militando em organizações e partidos de esquerda no Brasil. Divergências internas o fizeram desistir, ao menos por enquanto, da militância. Alberto gosta de discorrer sobre qualquer assunto com explicações longas e eloqüentes. Cita nomes, dados e datas com impressionante precisão. Ele garante que não foi para a Ucrânia para se transformar em um combatente, embora tenha feito treinamento básico militar e passado vários dias nas trincheiras, participando de missões de reconhecimento das linhas inimigas. “Se você disser que eu peguei em armas, eu nego”, dizia ele, em uniforme militar, ao lado de um rifle AK-74.

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Félix e seu pai são considerados “combatentes turistas” pelos mais experientes, como Rafael, Lusvargui ou Magayver. Ao contrário deles, os três não se importam em mostrar o rosto ou dizer seus nomes. De alguma forma, estão recebendo um reconhecimento que nunca tiveram na vida. A população local os considera heróis e, por meio das redes sociais, são vistos quase como celebridades em um universo restrito, porém bastante ativo, de admiradores de seus feitos. Magayver, por exemplo, saiu do Brasil com 80 amigos no Facebook. Hoje os conta aos milhares. Na última semana de março, em um raro passeio pelo centro de Donetsk, Rafael chegou a ser parado por um casal de senhores em um mercado de pulgas da cidade. Ao verem a bandeira brasileira bordada em seu uniforme, se emocionaram a ponto de derramarem lágrimas. Rafael, que considera como sua família apenas a mãe – a despeito de ter pai e irmãos – também se emociona. “Por alguma razão meus familiares no Brasil estão se orgulhando de tudo isso que estou fazendo”, diz. “Estou feliz”.  


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