Leia a frase abaixo normalmente:

Soa como caos. Agora leia de trás para a frente, letra por letra. Pois bem, ela dá a mesma leitura, seja da esquerda para a direita, ou vice-versa. Abro o artigo com essa frase porque foi uma presidiária quem me ensinou, e como escrevo sobre fatos crônicos que recentemente chocaram o País envolvendo o sistema prisional, a moça cabe na história. E cabe também a tal frase porque a política penitenciária nacional, seja qual for a direção que ela siga, tem, igualmente, sempre a mesma leitura. O poder público tem a obrigação de impedir rebeliões, mas o que se vê é o contrário: os motins se sucedem e nos últimos dias foi a vez do Rio Grande do Norte com 17 de seus 33 presídios rebelados.

Uma leitura linear do sistema penitenciário revela que nenhuma providência é tomada pelo governo federal (é há dinheiro para isso, no mínimo R$ 10 bilhões sangrados de uma estatal) para que penitenciárias deixem de ser masmorras a enxovalhar o País no cenário internacional e a fomentar rebeliões: “locais onde tortura e violência são endêmicas”, diz relatório da Anistia Internacional. E o próprio ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, já declarou que o sistema prisional é medieval e que ele preferiria morrer a cumprir pena longa no Brasil. Vamos agora à leitura mais difícil, como se fosse a de trás para a frente, e se verá que dá no mesmo. O que está em questão é o fato de o monopólio da violência, competência legítima do Estado, ter-se tornado uma espécie de Leviatã anêmico no interior do qual as diversas facções do crime organizado se atrevem a se achar também legítimas em tal função — é no sociólogo Max Weber que encontramos a mais correta defesa do Estado como “idealtipo” da legitimidade da posse do monopólio da violência, ação da racionalidade para a manutenção da ordem social. Tanto o descaso das autoridades em relação aos presos quanto esse Leviatã raquítico da legitimidade levam a idêntico resultado: rebeliões. Eis a nossa política penitenciária: repetitiva e pobre de sentido, quer de frente para trás, quer de trás para frente.

Para se devolver a legitimidade do monopólio da violência ao Estado e frear o crime organizado é preciso reconhecer que facções criminosas já não formam um estado paralelo, mas atuam como próprio Estado e no interior de um dos pilares constitucionais que é local de treinamento à reinserção social – a cadeia. Com quase 800 mil presidiários o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com 40% deles na condição de presos provisórios, e a superpopulação é fator de rebelião. Na semana passada veio um excelente exemplo de racionalidade weberiana que atenua o problema: os primeiros dias de audiências de custódia, implantadas pelo secretário da Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, indica que 40% das prisões em flagrante foram revogadas pelo Poder Judiciário já que os detidos não apresentavam periculosidade – foram encaminhados à assistência social ou aguardarão julgamento em liberdade. Não é sem razão que pelo menos 15 estados já se mostram interessados em seguir tal modelo.

O sociólogo Theodor Adorno provocava: “para não mais haver campos de concentração é preciso que haja civilização; como pode haver civilização depois que existiram campos de concentração?” Vale a adaptação: para haver sociedade sem crime organizado é necessário que não haja cadeia que funcione como campo de tortura; mas como humanizar as cadeias após o advento do crime organizado? O impasse é duro. O Estado “banalizou o mal”, tomando emprestado o diagnóstico de Hannah Arendt. As audiências de custódia são um caminho para o esvaziamento de que tudo “soa como caos”.

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ