Um mistério assombra a polícia de São Paulo. Uma semana depois de o empresário Silvio Santos permanecer por sete horas como refém de Fernando Dutra Pinto, sob a mira de uma pistola, na cozinha de sua casa, seu drama parece ter chegado ao fim. Até a quarta-feira 5, cinco das seis pessoas responsáveis pelo sequestro de Patrícia Abravanel, filha do dono do SBT, já estavam na cadeia, mas, como ISTOÉ antecipou na última semana, ninguém conseguiu explicar exatamente o que aconteceu na quarta-feira 29, quando três investigadores do 91º Distrito Policial, na zona oeste de São Paulo, se encontraram com Fernando, o líder do sequestro, no flat L’Etoile, em Barueri, cerca de 30 quilômetros distante da capital. O que poderia ser a prisão do sequestrador mais procurado do País se transformou em um enigma comprometedor. O investigador Marcos Amorim Bezerra foi morto com quatro tiros, um deles disparado na cabeça à queima-roupa, apontando para indícios de execução. Também foi assassinado o investigador Tamotsu Tamaki, mestre em artes marciais, com 20 anos de polícia. Ele levou nove tiros, sete deles pelas costas. Fernando, o sequestrador, estava sozinho. Levou um tiro nas nádegas, escapou do cerco e na manhã seguinte invadiu a mansão de Silvio Santos. O policial Reginaldo Nardi foi baleado, sobreviveu, mas não consegue explicar o entrevero. “Tudo está muito confuso e cheio de contradições”, afirma Rui Silveira Melo, delegado corregedor.

A troca de tiros no 10º andar do flat L’Etoile aconteceu por volta das 17h30. A história mal contada, no entanto, teve início bem antes. Eram 9h30 quando a camareira Maria Gilvânia percebeu que no apartamento 1004 havia armas e uma sacola cheia de dinheiro sobre a cama. Ela avisou um colega, que, por sua vez, avisou o gerente, Antônio Carlos. Este, em vez de chamar a polícia, comunicou o caso à empresa de segurança Santos e Santos Ltda., que presta serviços ao flat. A empresa não avisou a delegacia de Barueri, mas optou por comunicar o caso a um delegado amigo, Armando Bélio, titular do 91º Distrito Policial, localizado a cerca de 40 minutos do flat. Bélio decidiu agir por conta própria e foi até Barueri. Aqui começam as contradições. Ele diz que mandou para o local os investigadores Nardi e Bezerra e que chegou ao flat por volta das 14h acompanhado do investigador Tamaki, entrou no quarto e viu as armas e uma sacola com R$ 464.850. Bélio, então, teria apanhado o dinheiro e voltado para o 91º Distrito Policial, deixando no flat os três investigadores para que efetuassem a prisão de Fernando tão logo ele voltasse ao apartamento. A versão contada por um dos donos da Santos e Santos Ltda. é diferente. “Um dos irmãos Santos disse que o delegado Bélio esteve no flat por volta das 11h, e não às 14h, como ele nos informou”, relata o delegado José Eduardo Ferreira Ielo, da corregedoria. “Ele teria chegado com o investigador Tamaki e saído de lá carregando o dinheiro junto com outro japonês, até agora não identificado.”

O investigador Nardi, sobrevivente do entrevero no flat, apresenta uma terceira versão. Segundo ele, o delegado Bélio teria feito uma ligação para o celular de Bezerra por volta das 12h, pedindo que os dois fossem até o flat, onde se encontrariam com um conhecido, provavelmente Tamaki. Para esclarecer essas dúvidas, a corregedoria pretendia, ainda na semana passada, ouvir novamente o delegado Bélio e até submetê-lo a uma acareação com as demais testemunhas. O problema é que o titular do 91º DP conseguiu uma licença médica por 15 dias, sob a alegação de que se encontra afônico. As divergências de horários e nomes indicam que há algo de errado nesse enredo mal ensaiado, mas o mistério que assombra a polícia paulista não se resume a elas. Bélio não explicou por que levou o dinheiro para sua delegacia e deixou as armas, tampouco por que não comunicou imediatamente o fato aos policiais de Barueri nem aos colegas da Delegacia Anti-Sequestro. O investigador Nardi também tem muito a dizer. Os primeiros resultados da polícia técnica desmentem seu depoimento de cabo a rabo.

Marcas de sangue – Nardi afirmou que, quando o sequestrador Fernando chegou ao flat, subiu para o 10º andar no elevador social, junto com o investigador Tamaki. Fernando teria desconfiado da armadilha quando foi empurrado pelo policial para fora do elevador. Nesse momento, teria sido agarrado por Tamaki, mas conseguiu se desvencilhar do mestre em artes marciais e dado início a um tiroteio no corredor. Parece história da carochinha. Eram três contra um. Tamaki levou nove tiros e Bezerra, quatro – um deles à queima-roupa, como prova o exame cadavérico. “Agora vamos aguardar o resultado da balística para saber quem atirou em quem. É possível que os policiais tenham atingido um ao outro”, afirma o delegado Ielo. A perícia realizada no flat encontrou marcas de sangue no apartamento e não só no corredor. Também encontrou marcas de sangue e de tiros no hall do elevador de serviço, e não no hall do elevador social. As marcas de sangue indicam, ainda, que pelo menos um corpo foi arrastado entre o apartamento e o corredor. Por enquanto, ainda não foi concluído se esse corpo foi arrastado de fora para dentro do quarto ou no sentido inverso. Foram encontrados vestígios de sangue até no bar localizado no andar térreo do flat. Com tantas questões sem resposta, é crescente na polícia o sentimento de que teria havido um desacerto de contas entre Fernando e os policiais liderados pelo delegado Bélio. “Nenhuma hipótese pode ser descartada por enquanto”, diz o secretário de Segurança Pública, Marco Vinicio Petrelluzzi. Não é à toa que os investigadores mortos foram enterrados com honrarias, mas não receberam as condecorações que a polícia costuma homenagear os que morrem em serviço.

Duas pessoas sabem exatamente o que aconteceu: o sequestrador Fernando e o investigador Nardi. A intenção da corregedoria era ouvir os dois, mas Fernando já avisou que só falará na Justiça. O delegado Ielo, porém, acredita que o resultado da balística e a conclusão da perícia local serão decisivos para o resultado final da sindicância. Só aí é que a polícia paulista poderá considerar o sequestro de Patrícia Abravanel como um caso efetivamente esclarecido. O comportamento adotado pelo delegado Bélio também está na alça de mira da corregedoria. Afinal, esse não é o primeiro caso polêmico em que ele se vê envolvido. Em 1991, quando era delegado em Itapecerica da Serra, Bélio designou apenas um investigador para acompanhar um perigoso traficante ao dentista. Como era de esperar, o traficante fugiu.

Antecedentes – Enquanto a corregedoria procura uma luz para esclarecer as mortes no flat, a Delegacia Anti-Sequestro trabalha nas últimas linhas do inquérito do caso Patrícia Abravanel. Na semana passada, a hipótese de que a filha de Silvio Santos tenha sido vítima de novatos no mundo do crime ruiu definitivamente. Logo depois de a fotografia de Fernando Dutra Pinto ser divulgada, a delegacia de Barueri começou a tomar conhecimento de diversos crimes praticados por ele e por seu irmão Esdras, também preso por ter participado do sequestro de Patrícia. Alguns desses crimes demonstram que a dupla é audaciosa. Na noite de 12 de abril deste ano, os dois sequestraram um casal em Pinheiros, percorreram diversos caixas eletrônicos e na madrugada do dia seguinte abandonaram o casal amarrado no interior do carro no km 33 da rodovia Raposo Tavares, em Cotia. Dois policiais rodoviários perceberam algo de estranho e foram verificar o que estava acontecendo. Quando tentavam soltar o casal, foram surpreendidos por Fernando e Esdras, que acabaram roubando as armas, os coletes à prova de bala e o carro da Polícia Rodoviária. Os coletes foram encontrados na segunda-feira 3 em uma casa em Itapevi, na Grande São Paulo, que funcionava como uma espécie de quartel-general do grupo. No dia seguinte, Reinaldo Pires de Jesus, um dos policiais assaltados, esteve na delegacia de Barueri e reconheceu o colete. “Fernando é perigoso. Ele não nos deu a menor possibilidade de reação”, afirmou Reinaldo.

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Outro sinal da audácia do grupo foi revelado por Aparecida Sagionetti. Ela é vendedora de jóias e foi atacada duas vezes por Fernando. A primeira foi em agosto do ano passado, na porta de sua casa. Nessa ocasião, Fernando lhe roubou o equivalente a R$ 150 mil em jóias e dinheiro. Em dezembro, Aparecida voltou a ser roubada pelo mesmo ladrão, desta vez na porta de uma escola. O prejuízo, mais uma vez, equivale a R$ 150 mil. No início deste ano, Esdras e Fernando voltaram a agir. Assaltaram um posto de gasolina em Barueri e balearam o vigia. “Todas as vítimas reconheceram Fernando. Certamente foi com o produto desses crimes que eles financiaram o sequestro de Patrícia Abravanel e compraram a casa de R$ 90 mil, onde moram seus pais”, diz o delegado de Barueri, Paulo Roberto Viesi.

Prisões – Além dos coletes dos policiais rodoviários, no quartel-general do bando de Fernando a polícia encontrou as pistas que levaram à prisão de Tatiane Pereira da Silva, 18 anos, namorada de Esdras, e identificaram a namorada de Fernando, Luciana dos Santos Souza, 24 anos, conhecida como Jeniffer. Na terça-feira 4, ela se entregou à polícia em Bom Jesus da Lapa (BA). Tatiane era a responsável por tomar conta do quartel-general do grupo em Itapevi e para isso recebia R$ 140 por mês. Havia, ainda, a promessa de ganhar uma casa se tudo desse certo. Luciana era quem tomava conta de Patrícia no cativeiro, a quem chamava de “princesa”. “O Fernando comandou tudo. Não tínhamos a intenção de matar ninguém nem de ficar ricos. Nosso objetivo era usar o dinheiro para comprar cestas básicas e distribuir aos favelados”, disse. Até a noite da quarta-feira 5, a polícia ainda não havia encontrado Marcos Batista dos Santos, o único membro do grupo ainda foragido.

Na cadeia, Fernando pouco falava com os carcereiros e pediu remédio para aumentar o apetite, pois não tem conseguido comer. A vida de Silvio Santos também mudou. Após a prisão de Fernando, o empresário transferiu-se com a família para um sítio no interior paulista. Até o mistério que envolvia a ida do governador Geraldo Alckmin à casa onde o dono do SBT era mantido como refém já está resolvido. Foi o próprio governador quem se dispôs a ajudar nas negociações para a rendição de Fernando. Em nenhum momento Silvio Santos telefonou para ele, e quando Alckmin chegou a questão já estava resolvida.


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