Ele já foi “Tião” ou “Fermin”, tinha uma ficha corrida na qual constavam roubo de carros e assalto a bancos, vivia escondido, fugindo da polícia, um dia morando aqui, outro acolá, com a morte à espreita. Não, ele não era um marginal. Naqueles anos rebeldes, final da década de 60, ele fez parte daquele punhado de inconformistas que pegou em armas e virou guerrilheiro, engajando-se numa luta desesperada contra a ditadura militar que assaltou o poder no Brasil em 1964. Para homens como ele, a clandestinidade era a única maneira de escapar às perseguições, prisões, torturas e mortes que o regime reservava aos oposicionistas, principalmente militantes de esquerda. Caçados como ratos, muitos com as fotos estampadas em cartazes de “terroristas procurados”, os clandestinos tinham que conviver com codinomes, documentos falsos, habitar “aparelhos” (casas onde escondiam guerrilheiros), cobrir “pontos” (encontros com outros militantes). Mas os tempos mudaram. Veio a Anistia aos presos políticos, em 1979, a campanha das Diretas-já!, em 1984 e, no ano seguinte, veio o Tancredo Neves, e os militares voltaram para os quartéis. Hoje, passados dezesseis anos do fim da noite dos generais, “Tião” ainda vive como clandestino, com a identidade de A.C. Rocha, numa capital no Brasil que ele prefere não revelar (paranóia?). Uma situação que lembra o caso dos soldados japoneses encontrados nas selvas muito tempo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, acreditando que o conflito ainda não tinha acabado. Agora, quase 30 anos depois de ter trocado de identidade, o último clandestino brasileiro volta à luz do dia e revela o segredo que guardou zelosamente por todo esse tempo: A.C. Rocha é, na verdade, o ex-guerrilheiro Otávio Ângelo, codinomes “Tião” e “Fermin”. “Fiz tudo isso para não comprometer minhas famílias, a original e a atual. Quando veio a anistia, eu já estava casado e com filhos, com a nova vida consolidada. Agora, eu me sinto no fim da jornada e, por isso, creio que tenho o dever, para com a verdade e a história, de aparecer para contar o que aconteceu”, disse ele a ISTOÉ. Mas o velho revolucionário esclarece que não pretende retomar a antiga identidade. “Não voltarei a ser o que era. Minha atitude de assumir publicamente meu passado é apenas de coerência com meus filhos”, diz Otávio, que cresceu sem saber o verdadeiro nome de seu pai, um ex-cangaceiro de Lampião, e não queria que seus filhos vivessem o mesmo estigma.

O militante comunista Otávio Ângelo, cujos pais migraram para São Paulo e foram camponeses em Pirapozinho, fez parte de uma organização guerrilheira, a Ação Nacional Libertadora (ALN). O grupo era comandado por Carlos Marighella, o maior líder da oposição armada no País, assassinado em 1969 pelas forças de segurança. Em 1967, junto com Marighella, Otávio foi para Cuba, onde recebeu treinamento de guerrilha. De volta ao Brasil, naquele inesquecível ano de 1968, participou de muitas ações armadas contra a ditadura, embora nunca tenha tido a experiência de trocar tiros com os agentes da repressão. Preso e brutalmente torturado no final de 1969, ele seria banido para o México em 1970. Foi novamente para Cuba, onde ficou um ano e meio, voltando em seguida clandestinamente para o Brasil, disposto a retomar a luta armada. Até hoje, Otávio se recusa a contar os detalhes e o itinerário dessa volta, pois tem medo de um dia precisar usar o mesmo esquema. Ele fazia parte de um grupo de 17 militantes da ALN que retornou de Cuba em 1971, 13 dos quais foram mortos pela ditadura em poucos meses. Otávio foi um dos quatro sobreviventes. Acuado e sem perspectiva de luta, ele resolveu depor armas e se esconder atrás da identidade de A.C. Rocha. Sua nova família só conheceria sua verdadeira história muito tempo depois. E sua família original também levaria vários anos para descobrir, de maneira insólita, que ele não morrera.

O encontro – Em 1986, quando o Brasil se embalava na ilusão da estabilidade econômica com o Plano Cruzado, já fazia algum tempo que Tereza Ângelo havia deixado de viver de sobressaltos. Da mesma maneira que seu irmão, Otávio Ângelo, sete anos mais velho, ela fora guerrilheira, embora militando numa organização diferente, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Os percalços da vida clandestina impediram que os caminhos dos dois irmãos se cruzassem. Quase por milagre, Tereza, hoje com 59 anos, escapou de ser presa, torturada ou morta, como aconteceu com seu companheiro, Gerson Theodoro. Retomou a vida com outro camarada da luta armada, Adair Gonçalves. Do irmão Otávio, Tereza ficou sem notícias desde 1970. Àquela altura, ela quase não tinha esperanças de que ele estivesse vivo. Mas naquela manhã de 1986, cujo mês ela não se recorda, Tereza foi para a cidade fazer contatos comerciais. Ao descer do ônibus, seu olhar cruzou com o de um homem alto, acompanhado de um senhor mais velho. “Eu o encarei e depois continuei olhando-o pelas costas. Era ele, tinha certeza! Até o andar era o mesmo”, disse Tereza a ISTOÉ. “Mas eu precisava confirmar pela voz. Corri atrás dele, segurei-o pelo braço e perguntei seu nome. Ele deu outra identidade. Insisti, perguntando quem eram seus pais. Novamente, nomes desconhecidos. Mas eu não tinha mais dúvida, a voz era a do meu irmão mesmo. Aí, eu me apresentei: ‘Sou Tereza Ângelo, filha do Miguel e da Maria, nascida em Pirapozinho.’ Os olhos do Otávio, que até então não tinham me reconhecido, se encheram de lágrimas”, lembra, emocionada. Como nos tempos de clandestinidade, os dois irmãos viviam sem saber um do outro há oito anos na mesma cidade, em bairros próximos, dividindo a mesma calçada e pontos de ônibus adjacentes. Mas a identidade verdadeira de A.C. Rocha permaneceu um segredo de família(s). Tereza, por sua vez, era dada por muitos como morta na Argentina nos anos 70, como no livro Mulheres que foram à luta armada, do jornalista Luiz Maklouf.

Bombardeio frustrado – Como muitos militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Otávio Ângelo entrou na luta armada porque se decepcionou com a incapacidade de resistência da organização ao golpe militar de 1964. “Estávamos preparados para resistir, mas não tivemos direção política”, conta ele. “No dia do golpe, por exemplo, nós, junto com companheiros da FAB, tomamos a Base Aérea de Cumbica, em São Paulo. Fizemos milhares de panfletos numa gráfica da Penha para serem distribuídos de avião por toda a cidade. A idéia era bombardear o Palácio dos Campos Elíseos (antiga sede do governo paulista), onde estavam entrincheiradas as tropas do governador Adhemar de Barros, que aderira ao golpe. Mas todo mundo ficou esperando uma voz de comando que não apareceu. Isso resultou na retomada da base pelos golpistas e na prisão em massa dos companheiros da Aeronáutica”, relembra. “A partir daí, passamos a desacreditar e a questionar a direção do partido”, diz Otávio.

Ele integrou a primeira turma da ALN que recebeu treinamento guerrilheiro em Cuba, entre setembro de 1967 e julho de 1968. “O treinamento físico era bastante rigoroso”, lembra Otávio. “Caminhava-se muito, durante mais de uma semana, dia e noite, carregando todo o equipamento e fuzis FAL e AK-47. Na escuridão, não levávamos lanternas, nada. A comida era enlatada: sardinha, carne, leite condensado, tudo muito precário do ponto de vista da alimentação. Tínhamos oficiais do Exército cubano como instrutores. Treinamos levantamento de informações, preparação de emboscada, montagem de minas antitanques. Aprendemos também a fazer explosivos como minas, granadas (usando latas de alimentos), bombas caseiras e bomba-relógio. Era basicamente um curso de guerrilha rural”, conta Otávio. Terminado o curso, ele voltou ao Brasil e, seis meses depois, passou a coordenar o setor de fabricação de armas (metralhadoras e morteiros) da ALN. “As armas eram artesanais e estavam sendo testadas. Fabricavam-se metralhadoras com facilidade. Isso eu aprendi aqui, não em Cuba. Eu era torneiro mecânico e tinha feito curso de especialização no Senai. Pegamos um projeto e começamos a fabricar as armas. Fizemos umas 15 unidades. O problema é que elas falhavam”, lembra.

Prisão, torturas e banimento – Otávio foi preso em São Paulo num sábado pela manhã, poucos dias depois da morte de Marighella, em 4 de novembro de 1969. “Devo ter sido o último militante a se reunir com Marighella. Estive com ele das 19h às 19h30, num ponto no Tatuapé, ao lado da avenida Celso Garcia (São Paulo). Às 20h15, ele foi assassinado. Minha prisão deve ter sido lá pelo dia 11 de novembro”, relembra. “Fui levado para a Operação Bandeirantes (Oban), organização paramilitar da repressão, embrião dos DOI/Codi), na rua Tutóia. Eles me puseram no pau-de-arara às 11 horas da manhã. Eu anotava os pontos numa caderneta que eles pegaram. A primeira sessão durou até a meia-noite. Aí, para ganhar tempo, entreguei o depósito onde guardávamos armas, que estavam enterradas num quintal de um aparelho na zona leste de São Paulo.” Otávio ficou 30 dias na Oban e outros 20 dias no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde foi torturado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, o mais famoso facínora do regime militar. Depois, ele foi para o Presídio Tiradentes, considerado um “purgatório”, porque lá os presos políticos não eram mais torturados e podiam receber visitas. Em 14 de março de 1970, Otávio e outros quatro guerrilheiros presos foram libertados e banidos para o México, em troca da libertação do cônsul do Japão em São Paulo, Nobuo Okuchi, sequestrado por um comando da VPR três dias atrás.

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Antes de partir, ele sofreria novas torturas. “Me levaram outra vez para o Dops. Apanhei muito, levei socos, chutes, ‘telefone’ (tapas nos ouvidos). Depois, me mostraram uma gravação com vozes de mulheres, que pareciam ser minhas irmãs, chorando, implorando para eu ficar. Aquilo foi terrível. Quase desisti”, conta Otávio.

No dia em que o cônsul japonês foi sequestrado, “Helga” (Tereza Ângelo), viajou do Rio de Janeiro para São Paulo em companhia de “Jamil” (Ladislau Dowbor), que era o comandante da operação de sequestro. Era uma manobra de despiste. “Nós fizemos o papel de marido e mulher. Mas eu não participei do sequestro e não sabia que meu irmão estaria na lista dos cinco libertados”, conta Tereza. Até hoje, Otávio Ângelo desconhecia as razões pelas quais seu nome tinha sido incluído na lista, uma vez que ele já se encontrava no Tiradentes e, portanto, teoricamente, estava livre de novas torturas. Somente agora a razão foi revelada. “A inclusão dele não foi um acaso. Otávio Ângelo tinha contatos do Marighella, principalmente no campo, que nos interessava preservar”, disse a ISTOÉ o ex-guerrilheiro Ladislau Dowbor, hoje professor da PUC de São Paulo. “Estávamos mantendo contatos no campo para o início da guerrilha rural”, admite Otávio.

Vida nova – Depois de ficar um ano e meio em Cuba, Otávio volta clandestinamente para o Brasil em 1971 e se embrenha no interior do País. Mas, com os companheiros sendo dizimados, a polícia em seu encalço e o sonho da guerrilha rural indo para as calendas gregas, ele desiste da luta armada e decide começar a viver uma vida normal. Foi o que o salvou de ser morto ou de integrar a lista dos “desaparecidos”. Com um documento de identidade falsificado, confeccionado ainda em Cuba, e uma carteira de trabalho também forjada, Otávio assume a identidade de A.C. Rocha e se estabelece numa capital brasileira. Ele ainda consegue falsificar um certificado de reservista, documento essencial para aqueles tempos. Vende uma máquina fotográfica que tinha trazido de Cuba para comprar colher, prumo e metro e volta a ser pedreiro, profissão que ele exercia quando saiu da cidade natal. Morando numa pensão, começa a ter um caso com a lavadeira, com quem viria a se casar já em 1972. Tiveram cinco filhos, dois dos quais morreriam. Esforçado, Otávio faz os supletivos de primeiro e segundo graus e ainda se diploma em filosofia numa universidade federal. Mas a alma do velho combatente Otávio não abandona o pedreiro A.C. Rocha: militante do sindicato da categoria, participa de várias greves e se torna um dos fundadores do PT na cidade.

Aos 67 anos, trabalhando como mestre-de-obras, Otávio Ângelo vive hoje muito modestamente na periferia e continua acreditando nos ideais socialistas da juventude, mas agora o ex-guerrilheiro descarta a luta armada. “Sou o que sou hoje: o Otávio é passado, uma identidade que vou guardar como relíquia”, filosofa. A atitude do velho militante de ter permanecido como “clandestino”, mesmo depois do fim da ditadura, pode parecer paranóia de quem não esqueceu os “anos de chumbo”. Mas dá o que pensar quando um governo democrático permite que o Exército continue escondendo até hoje o paradeiro dos corpos dos guerrilheiros mortos no Araguaia (1972-74) e, além disso, redija documentos – recentemente divulgados pela imprensa – postulando a “eliminação” de adversários (leia-se movimentos sociais) e admitindo “arranhar direitos dos cidadãos” para obter informações.


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