Não poderia ser diferente. A Terceira Conferência da ONU contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e a Intolerância, realizada em Durban, na África do Sul, revelou-se um caldeirão de polêmicas e ficou refém de um conflito regional, aquele que há décadas opõe árabes e israelenses no Oriente Médio e há um ano vem se radicalizando perigosamente. Foram mais de 17 mil pessoas de 153 países que, entre os dias 31 de agosto e 7 de setembro, tentaram discutir os mais controversos temas, desde a implantação de políticas de ação afirmativa para beneficiar minorias étnicas ou raciais discriminadas até ações compensatórias para países que sofreram com o colonialismo e a escravidão. Mas a grande celeuma, que levou as delegações dos EUA e de Israel a abandonar a conferência na segunda-feira 3, foram os textos provisórios, articulados por países árabes e muçulmanos, nos quais Israel é classificado como um “Estado racista” que pratica uma política genocida em relação aos palestinos. Dois dias depois, a conferência quase implodiu de vez com a ameaça da União Européia de abandonar a reunião por causa das exigências de alguns países africanos de que a escravidão, o tráfico de escravos e o colonialismo fossem considerados “crimes contra a humanidade”. Eles reivindicavam, como compensação, não apenas desculpas explícitas como o perdão das dívidas e o aumento de investimentos na África. O Brasil marcou presença com cerca de 500 participantes – uma das maiores delegações – e uma agenda complexa, formulada pelo governo e por ONGs. O País também presidiu, junto com o Quênia, o grupo que discutiu o pedido de reparação internacional pela escravidão. Da reunião de Durban sairiam dois documentos finais a serem assinados por todos os países. Um reconhece a discriminação e a intolerância que persistem nos dias de hoje e outro propõe um programa de ação para o combate a todas as formas de discriminação e racismo.

Protesto brasileiro – Se essas propostas vão ser postas em prática é a grande questão. Na terça-feira 4, cerca de 200 manifestantes brasileiros tomaram as ruas em frente à sede da convenção, com faixas e cartazes exigindo o compromisso do governo brasileiro de não ficar só no blablablá. A estrela americana da convenção, o ator Danny Glover, de Máquina mortífera, juntou-se ao protesto. Ele disse a ISTOÉ que deu apoio aos manifestantes porque o Brasil “tem uma pauta importante e está entre os países da diáspora negra”. Para o pastor e líder afro-americano Jesse Jackson, pela primeira vez o Brasil chama a atenção do mundo para seus problemas de discriminação e preconceito. “Os EUA, a Grã-Bretanha, o Canadá e os países africanos discutem há muito tempo essas questões. Mas só agora o Brasil passa a fazer parte de uma agenda internacional”, disse Jackson a ISTOÉ. O governo brasileiro, por sua vez, garante que as declarações vão sair do papel, sim, mas não fixa nenhuma data para começar a pôr a mão na massa. “O presidente Fernando Henrique reconhece que há uma necessidade de se avançar na questão racial. É verdade que existe uma discussão não só sobre o prazo, mas também sobre os instrumentos que vão ser utilizados para dar acesso à metade da população brasileira”, disse a ISTOÉ o ministro da Justiça, José Gregori, chefe da delegação brasileira. O embaixador brasileiro Gilberto Sabóia afirmou que “há setores da população brasileira que não se conformam mais em ser meros espectadores e querem assumir um papel decisivo. E o Brasil só tem a lucrar com isso”.

A idéia de adoção de cotas para negros na educação – rejeitada pelo ministro da Educação, Paulo Renato – teve mais ênfase no Brasil do que em Durban, onde ela foi apenas um dos pontos. “O debate sobre cotas, embora importante pelo simples fato de colocar a questão da desigualdade racial, estreita a problemática”, diz Sueli Carneiro, coordenadora do Geledés-Instituto da Mulher Negra. “É preciso amarrar as duas pontas: políticas universalistas, que ponham em foco as desigualdades raciais, as ações afirmativas. Senão, não adianta nada”, enfatiza. “Há uma confusão no Brasil entre ação afirmativa e cotas. O sistema de cotas é apenas uma das modalidades de ação afirmativa usadas para corrigir situações insustentáveis em determinados setores onde não há negros. Como no Itamaraty, por exemplo, onde temos mil diplomatas, dos quais apenas três são negros”, explica o procurador e professsor da UFRJ Joaquim Barbosa Gomes. Ele diz que é preciso uma mudança radical na educação. “O governo tem que investir na escola pública. Grande parte dos recursos governamentais vai para as escolas privadas, onde está a elite branca”, diz Gomes. Para ele, “as ações afirmativas nos EUA tiveram resultados impressionantes”. Em 30 anos, áreas como medicina e direito “tiveram 700% de aumento da população negra nas universidades”.

Racismo e desigualdade – Isso recoloca em pauta a velha discussão sobre racismo como fruto da desigualdade social. Para muitos, a discriminação racial só poderá ser vencida com a diminuição da desigualdade. É o caso do professor americano George Fredrickson, do Departamento de História da Universidade de Stanford, nos EUA. “O problema central do Brasil é a desigualdade social. A única maneira possível de acabar com o preconceito é investir nas classes mais pobres. Há também a questão da identificação de alguns brasileiros que se consideram mulatos. Nos EUA, os negros assumem sua identidade e por isso as políticas de afirmação deram certo”, diz o professor. A experiência da África do Sul, país que derrubou o mais tirânico regime segregacionista do mundo, parece confirmar, em parte, essas teses. “Aqui, muito pouco aconteceu no patamar econômico. Permanecemos sob o comando da elite branca, mesmo com negros em altos postos do governo. Isso porque eles simplesmente não têm comando. Além do mais, o governo sul-africano falhou no programa de criação de empregos para os negros”, afirmou a ISTOÉ o analista Neveille Alexander, professor da Universidade da Cidade do Cabo e companheiro de prisão do ex-presidente Nelson Mandela.

Com polêmicas sobre cotas e reparações longe de serem resolvidas, o conflito do Oriente Médio acabou roubando a cena da conferência, ameaçando esvaziá-la na segunda-feira 30, com a tumultuada retirada das delegações americana e israelense da reunião. Antes mesmo de a conferência começar, os americanos boicotaram-na por causa da insistência dos documentos preparatórios em relacionar o sionismo com uma forma de racismo. Isso fez com que a reunião ficasse privada da presença do secretário de Estado americano, general Colin Powell, um dos maiores expoentes da comunidade afro-americana. O líder do Congresso Judaico na ONU, Daniel Lack, disse a ISTOÉ que, infelizmente, “alguns setores foram seduzidos pela causa palestina”. O rabino Henry I. Sobel, presidente do rabinato da Congregacão Israelita Paulista (Cipi), membro da delegação brasileira, também protestou, mas não deixou a convenção. “Cheguei a Durban com o coração pesado, porque sinto na pele os ataques aos judeus. Fui pessoalmente convidado pelo presidente Fernando Henrique, que me incubiu de dizer que, para o Brasil, sionismo não é racismo”, afirmou o rabino.

Megaeventos como essa conferência contra o racismo têm a fama de realizar mais marketing do que obter resultados concretos. O que sairá desse caldeirão dependerá da continuidade do trabalho dos governos e das organizações que por aqui passaram. “O racismo é uma doença da mente e da alma” e, por isso, muito difícil de combater, como lembrou Nelson Mandela.