Foi só o governador de Minas Gerais, Itamar Franco, chutar o pau da barraca do PMDB para o senador José Sarney (AP) voltar à cena. Afastado do Senado na agonia de seus ex-ministros Antônio Carlos Magalhães e Jader Barbalho, Sarney reaparece agora como opção da ala governista do PMDB na corrida presidencial. “Ele tem tudo para entrar no páreo”, avalia o líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros (AL), hoje o principal interlocutor de Sarney no partido. O ex-presidente começa a empreitada lançando na quarta-feira 29 o livro Sarney, o outro lado da história, no qual tenta mostrar que a imagem de seu governo foi distorcida pela mídia. Com o mandato marcado por uma explosão inflacionária, Sarney é apresentado no livro, coordenado pelo jornalista Oliveira Bastos, como um político de centro-esquerda com forte preocupação social, que conseguiu conduzir a travessia da ditadura para a democracia “com os militares” e não contra eles. Personagens principais da operação que assegurou a aprovação pela Constituinte de um mandato presidencial de cinco anos, ACM e Jader foram convenientemente esquecidos no livro.

Em entrevista ao historiador maranhense Benedito Buzar, Sarney conta como trabalhou durante um ano para montar o esquema militar do governo Tancredo Neves: “Havia mais de um ano que me reunia com Leônidas, secretamente, na Academia de Tênis, toda vez que ele vinha a Brasília para reuniões do Alto Comando do Exército, acompanhando a versão militar da situação política.” Indicado ministro do Exército, o general Leônidas Pires Gonçalves foi peça-chave na madrugada do dia 15 de março de 1985, quando Tancredo foi hospitalizado e setores do PMDB e do governo Figueiredo queriam dar posse a Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara. Sarney traça um quadro dramático da véspera da posse e afirma que, se imaginassem que Tancredo morreria, não o teriam deixado assumir: “Várias reuniões e articulações foram feitas para evitar minha posse. Assumi porque o preço do meu afastamento poderia ter um custo imprevisível: o poder voltar aos militares.”

Contradições – No livro, o ex-ministro Saulo Ramos reproduz o diálogo que manteve com o general Leônidas, em que foi tranquilizado em relação aos quartéis e deu a interpretação jurídica que assegurou o direito de Sarney assumir o mandato: um “ou” no capítulo da Constituição que regula a posse do presidente ou do vice-presidente. Em seguida, Ramos telefonou para o então senador Mário Covas para tentar convencê-lo de que seria um erro empossar Ulysses. “Covas convenceu-se e a fervura baixou. Sarney encarregou-me de articular algo para a televisão naquela noite. O jurista Afonso Arinos foi para a frente das câmaras, leu com muita ênfase o ‘ou’ e arrematou: José Sarney não é vice de Tancredo Neves e, sim, vice-presidente da República.”

Mesmo com roteiro sob medida para mostrar coerência no governo, as contradições afloram no livro. Por exemplo: Sarney diz que atendeu apenas a recomendações técnicas no lançamento do Plano Cruzado. “Na última reunião, o presidente Sarney determinou que os preços deveriam ser congelados, o que não constava das propostas iniciais da equipe”, corrige o então ministro do Planejamento, João Sayad, hoje secretário da Fazenda da prefeita de São Paulo, Marta Suplicy. Outra diferença. Sarney é taxativo: “Fico perplexo quando se fala que o Cruzado foi eleitoreiro. Que foi feito ou usado para ganhar eleição. Eu nunca pensei em eleições, pensava na legitimação do governo. Meu grande aliado e construtor desse instante foi João Sayad.” Na versão de Sayad, em agosto de 1985, quando o empresário Dilson Funaro já havia substituído Francisco Dornelles no Ministério da Fazenda, Sarney reuniu a equipe econômica para dar um recado. “Não vou presidir as eleições dos constituintes com um país assoberbado por essa taxa de inflação. Temos que estar prontos para fazer alguma coisa se ela continuar recrudescendo.” O empresário Matias Machline, amigo de Sarney, sugeriu buscar uma alternativa à cartilha do FMI. Em sigilo, o economista Pérsio Arida foi enviado a Israel, para conhecer o plano econômico que conseguia aliar o combate à inflação com crescimento econômico. Daí surgiu a base teórica do Plano Cruzado.

Cruzado – Os economistas do Cruzado costumam atribuir seu fracasso à recusa de Sarney em fazer correções às vésperas das eleições de 1986, em que o PMDB elegeu a maioria do Congresso e todos os governadores, com exceção do de Sergipe. Em julho de 1986, Sarney reuniu a equipe econômica na casa de hóspedes que a Vale do Rio Doce tinha em Carajás. Os economistas saíram insatisfeitos com o veto de Sarney à adoção de medidas mais duras para tentar salvar o Cruzado. “Não era justa a acusação. Eles não estavam de acordo sobre o caminho a seguir. Tentei em Carajás forçar uma definição de rotas, mas não deu em nada, tal o dissenso na equipe econômica. Só eu levei a culpa”, lamenta Sarney.

Outra polêmica é a avaliação de Sarney de que, com todo o desgaste de seu governo, poderia ter assegurado a chegada de Ulysses ao segundo turno na eleição de 1989. Para Sarney, isso não ocorreu porque Ulysses não aceitou o apoio do governo.

Entrando agora na corrida presidencial como um azarão capaz de obter o apoio do PMDB e do PFL, Sarney parece acreditar que com uma mãozinha do presidente Fernando Henrique pode chegar lá.