Em 1500, por causa de uma tormenta no mar, o navegador português Pedro Álvares Cabral muda de rota e descobre o Brasil, um território ocupado por nativos sem cultura. Começa a história do povo brasileiro. Certo? Errado. Quem acha que o País nasceu dentro da armada de Cabral precisa redescobrir nossa história. A exposição “Brasil 50 mil anos: uma viagem ao passado pré-colonial”, aberta na segunda-feira 3 na sede do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, reúne importantes achados arqueológicos para mostrar nossa gênese. O uso sofisticado dos recursos naturais, a organização social e política, a diversidade tecnológica e cultural dos habitantes da pré-história brasileira revelam um povo único. Os tupis são um exemplo de índios globalizados: carregaram sua herança cultural por todo o território brasileiro. Nas aldeias do Planalto Central, os clãs indígenas eram reconhecidos pelas cores e pelo formato de suas penas. Os sambaquieiros foram os construtores das pirâmides brasileiras, os cemitérios verticais erguidos com conchas. Esse tesouro arqueológico – que conta com paus e pedras a pré-história do Brasil – andava guardado por falta de espaço no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. São quase mil objetos reunidos pela primeira vez numa exposição pública

Preparada em dois anos, a mostra fica em Brasília até 2 de dezembro, de onde segue para São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Porto Alegre e Manaus. Tudo começa num túnel do tempo. O visitante atravessa um corredor pisando em fotos de sítios arqueológicos para chegar aos hábitos dos nossos antepassados. Em vez de cavernas, eles viviam em abrigos abertos, como convinha a um ambiente tropicalizado. Fogueiras e desenhos rabiscados nas paredes trazem as marcas de povos que viveram na região de Boqueirão da Pedra Furada, no Piauí. É o mais antigo sinal de vida humana no Brasil. Exemplos da cultura ancestral aparecem ainda em esculturas de pedra, colares de dentes de macacos, pratos ornamentais e pontas de flecha. Mais um passo e o público é engolido por um corredor de “vértebras” gigantescas que simboliza a origem mitológica da Amazônia. Segundo a lenda, sempre que a cobra gigante do rio Amazonas erguesse sua cabeça, nasceria uma nova tribo indígena. Uma demonstração do conhecimento tecnológico desses povos são as peças de cerâmica de oito mil anos, as mais antigas das Américas.

“Queremos recuar ao ano zero. Não começamos há 500 anos, mas há milhares de anos”, diz a antropóloga Paula Montero, diretora do museu e coordenadora-geral da mostra. A data mais aceita para o aparecimento dos primeiros brasileiros é de 12 mil anos e há um consenso entre os cientistas de que os povos que habitaram o Brasil vieram do Norte. Estima-se que, entre 18 mil e 13 mil anos atrás, as extremidades da Ásia (Sibéria) e da América do Norte (Alaska), onde se situa o Estreito de Bering, eram juntas, unindo os dois continentes. Cresce, no entanto, uma nova teoria: a de que os primeiros brasileiros chegaram pelo mar, vindos das ilhas da Polinésia, há 30 ou 40 mil anos. A ocupação não foi aleatória. Todo o território parecia estar mapeado pelos índios, que batizaram cidades, rios, lagos e montanhas. “Não há grandes obras e monumentos como as dos egípcios, mas há uma mimetização com a paisagem. O brasileiro era inteligente o suficiente para se tornar visível”, explica a professora Rosely Nakagawa, uma das organizadoras da exposição.

Se o Brasil não teve pirâmides, teve os sambaquis, palavra que em tupi significa monte de conchas. Essas montanhas de 500 metros de extensão e até 60 metros de altura eram construídas em camadas superpostas e funcionavam como depósito de objetos e de urnas funerárias. Não há mais exemplares intactos no País. O maior sambaqui brasileiro fica em Garopaba do Sul, em Santa Catarina, e hoje serve de pista para motocross. “Essas peças revelam a forma como esses povos entendiam o mundo, a convivência harmônica com a natureza e o desenvolvimento de uma filosofia de vida tropical”, avalia o arquiteto Newton Massafumi Yamato, que integrou a equipe de pesquisa. Uma herança cultural tão forte que resiste, apesar de a população indígena ter encolhido de seis milhões para os atuais 350 mil indivíduos. Rica, única e imperdível como a cultura indígena, a exposição ecoa como um grito preso na garganta. Há milhares de anos.

Indiana tropical

Para quem ouve a palavra arqueólogo e se lembra do personagem eternizado por Harrison Ford na série Indiana Jones, a realidade não poderia estar mais distante. Sem o glamour do cinema, mas com desafios igualmente instigantes, os pouco mais de 350 arqueólogos nacionais lutam para desvendar nossa pré-história. Nos mais de 15 mil sítios arqueológicos espalhados pelo Brasil há tesouros preciosos.

Um dos três responsáveis pela curadoria científica da exposição, o paulistano Eduardo Neves, 35 anos, é um missionário das origens brasileiras. Historiador e doutor em arqueologia, ele participou de dezenas de expedições, mas desde 1991 trabalha no Amazonas, principalmente na região do rio Negro. De sua equipe fazem parte cinco arqueólogos e 20 estudantes e colaboradores, entre eles três índios do Amapá. “A arqueologia é como a medicina. Uma escavação lembra uma cirurgia. É preciso ser preciso para salvar o ‘paciente’”, compara.

Neves conta que um dos desafios dos arqueólogos é descobrir a origem dos tupinambás e analisar seu impacto sobre outras nações indígenas. “Temos elementos para dizer que a Amazônia era densamente ocupada, ao contrário do que acontece hoje”, afirma. Neves explica que, desde a pré-história, os brasileiros são diversificados: plantavam várias culturas e caçavam diferentes espécies de animais. “O Brasil é um país tropical e essas condições definiram nossa identidade. Temos que parar de importar coisas e valorizar nossas riquezas”, conclui.