Em suas andanças por Bali, Indonésia, em 1991, o fotógrafo paulistano radicado em Nova York André Cypriano presenciou um ritual religioso que lhe causou enorme estranhamento. Com máscaras coloridas simbolizando o deus balinês Leak, algumas pessoas se auto-flagelavam com facas pontiagudas, mergulhadas numa espécie de transe hipnótico. Impressionado pela violência, surpreendeu-se ainda mais quando uma delas se aproximou dele e o fitou com firmeza. Cypriano a encarou. Ele havia aprendido, na própria Indonésia, que é preciso “olhar o demônio de frente, sem jamais demonstrar medo”. Três anos depois, outra vez o fotógrafo lembrou do ensinamento quando colocou sua velha câmera Nikon F2, comprada de segunda mão, a menos de dez centímetros do rosto de Chiquito, assassino de 19 pessoas e então líder dos 600 detentos do hoje extinto presídio Cândido Mendes, instalado na Ilha Grande, baía de Angra dos Reis, Rio de Janeiro. Chegar tão perto dele era o sinal que Cypriano precisava para ter certeza de que desfrutava da intimidade do criminoso e, portanto, tinha passe livre para realizar um amplo registro em preto-e-branco sobre a vida daqueles presidiários, que resultou no livro O caldeirão do diabo (Cosac & Naify, 112 páginas, R$ 49) e na exposição de mesmo nome, em cartaz até 14 de outubro na Fnac, em São Paulo.

Graças à influência de Chiquito, em agosto de 1993, o fotógrafo transitou livremente durante dez dias entre os presos daquele lugar castigado pelas chuvas 123 dias por ano. Tremenda contradição para Cypriano, que conheceu a região, em 1985, à cata de novas ondas para surfar. À época, percebeu que havia mais do que paisagens exuberantes. Junto com amigos foi surpreendido por uma caçada a presos fugitivos e viu um deles ser içado do mar por um helicóptero. A partir dessa imagem, desenvolveu certa obsessão pelo que chama de “o outro lado da Ilha Grande”. Curiosamente, Cypriano fez o último e mais completo registro fotográfico do presídio que abrigou presos políticos como o deputado Fernando Gabeira, bandidos famosos do porte de Madame Satã, e serviu de cenário para o clássico da literatura brasileira Memórias do cárcere, escrito por um de seus “hóspedes” mais ilustres, o escritor Graciliano Ramos. O complexo penitenciário foi implodido em abril de 1994, por ordem do então governador Leonel Brizola.

Sentimentos – Nos dias em que conviveu com a rotina do presídio, Cypriano colheu boas histórias, contadas no livro, num texto escrito primeiramente em inglês, idioma com que diz se expressar melhor. Foi uma experiência e tanto. “A felicidade para eles é algo muito grande e a tristeza, também. Quando vão fazer amor, realmente vão fazer amor.” Ao presenciar sentimentos tão exacerbados, Cypriano tornou-se amigo dos líderes do presídio. “Depois do trabalho, eles me ligavam de madrugada para conversar, precisavam de notícias honestas do lado de fora”, conta. “A câmera foi apenas um link, uma justificativa para eu ter entrado naquele mundo.” O resultado é forte. Decorrente do uso do preto-e-branco e de filmes de 3.200 asa, muito sensível à luz, os retratos ganharam aparências fantasmagóricas e extremamente realistas.