Em julho de 1992, o motorista Eriberto França compareceu à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investigava atividades ilícitas do empresário Paulo César Farias, tesoureiro da campanha do então presidente Fernando Collor, e confirmou tudo o que dissera à revista ISTOÉ na edição que circulou no dia 1º daquele mês. Eriberto trabalhava para a secretária particular de Collor e contou em detalhes como o ocupante do cargo mais importante do País recebia dinheiro de empresários para pagar despesas pessoais. Foi o testemunho do motorista que vinculou diretamente o presidente ao esquema de corrupção operado por PC Farias. Trinta e dois anos depois, o país voltou a se estarrecer com uma narrativa sobre desvios de recursos públicos. Na terça-feira 10, o ex-gerente da Petrobras Pedro Barusco relatou na CPI da Petrobras, com uma calma desconcertante, as nefastas práticas com dinheiro público investigadas pela Operação Lava Jato. Até então, o submundo apresentado por Barusco era conhecido apenas por meio da frieza dos documentos a que a opinião pública teve acesso. Em um dos momentos mais importantes, o ex-gerente disse que, a pedido do tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, transferiu US$ 300 mil dos recursos desviados do caixa da Petrobras para a campanha presidencial de Dilma Rousseff em 2010.

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Há semelhanças e diferenças nos depoimentos separados por mais de duas décadas. O motorista se ancorava no patriotismo para justificar sua atitude. Ficou famosa uma frase de Eriberto, logo no início do depoimento, quando o deputado Roberto Jefferson, líder do governo, perguntou se ele estava agindo apenas por patriotismo. ‘O senhor acha pouco?’, respondeu. Já o ex-gerente da Petrobras escancarou seus crimes para tentar salvar a própria pele. “Eu tive a fraqueza de começar. Primeiro, eu fiquei feliz, depois virou um pânico. Agora estou aliviado por estar ajudando na repatriação. Não recomendo para ninguém, é muito doloroso”, afirmou Barusco ao mencionar os US$ 97 milhões de propina que recebeu por favorecer empreiteiras em contratos com a companhia. Eriberto deixou o Congresso sob o aplauso de servidores e cidadãos que saíram de casa para ver o novo herói da República. Bem diferente, o relato da semana passada provocou intenso constrangimento em parlamentares, servidores e curiosos, que se surpreenderam com a desfaçatez do ex-gerente ao detalhar a pilhagem bilionária dos cofres públicos. “Eu comecei (a receber propina) em 1997 ou 1998. Foi uma atitude isolada. A partir de 2003 ou 2004, estava institucionalizado. Em relação a minha última fase, a partir de 2008 ou 2009, (o esquema) era sistêmico porque em contratos de algumas empresas já vinha embutido o pagamento de comissões e propina. Era o dia-a-dia dessas licitações”, disse o gerente, no longo depoimento que escandalizou o País.

Ainda no terreno das semelhanças, tanto o depoimento de Eriberto quanto o de Barusco fragilizaram ainda mais um governo atingido por denúncias. Nos dois casos, a rede de corrupção foi desnudada na arena pública e a palavra “impeachment”, dita timidamente por adversários mais radicais, passou a ressoar mais fortemente. Os dois escândalos sucederam pacotes econômicos que incluíram medidas impopulares, reforma ministerial desastrosa e um pronunciamento presidencial em rede nacional que, em vez de unir a sociedade, provocou reação contrária. Em meio a este turbilhão, na sexta-feira 13 a Mesa Diretora da Câmara recebeu um pedido formal de impeachment protocolado pelo deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ). No documento, o parlamentar denuncia a presidente Dilma Rousseff por crimes de responsabilidade e cita o artigo 4º da Lei de Impeachment, 1.079/1950. “Independente da intenção, a denunciada comete crime ao agir de modo temerário ou mesmo por negligência, ao não ser capaz de governar com probidade, como tem demonstrado desde o início de sua gestão”, argumenta na fundamentação jurídica do pedido. Agora, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), terá que decidir se acata ou rejeita a petição de Bolsonaro.

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Os juristas se dividem sobre a abertura de um processo de impeachment. Os defensores da tese se agarram à flagrante falta de ação de Dilma Roussef frente aos desvios bilionários da Petrobras. Nessas circunstâncias, os especialistas apontam indícios de crime de responsabilidade, o que pode criar condições para o presidente da Câmara dos Deputados acatar um pedido de afastamento. Por isso, o que mais assustou o Planalto no depoimento de Barusco foi uma afirmação sobre a “institucionalização” e progressão da cobrança de propina no início do governo do PT. “O pedido de impeachment não tem que vir acompanhado da totalidade da prova dos fatos, bastam indícios expressivos”, afirma o membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas Sérgio Ferraz.

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Na opinião Miguel Reale Júnior, ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso e um dos autores da petição que originou o afastamento de Collor, impeachment não é irregular, não é golpe constitucional. Mas o jurista pondera que o escândalo da Petrobras e a crise política não enquadram a presidente nos critérios de “dolo” necessários à abertura de um procedimento. Nessa linha, o principal argumento em favor de Dilma é o fato de os ilícitos investigados terem ocorrido antes do início do segundo mandato. “Para pedir o impeachment, a presidente precisaria ser suspeita de algum malfeito desde janeiro até agora”, afirma o ex-ministro. Professor aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), o jurista Fábio Konder Comparato não vê fundamentos jurídicos para um impeachment com base em argumentos como “estelionato eleitoral”. Konder, porém, acredita que o Congresso pode ceder à pressão da opinião pública. “Essa decisão inicial é feita pela Mesa da Câmara, a qual, segundo parece, não morre de amores pela presidente da República”, diz. O enquadramento de Collor teve razões diferentes. No exercício do cargo, ele teve despesas pessoais pagas com dinheiro de corrupção. Contra Dilma pesam acusações mais direcionadas a seu partido, o PT, e à utilização da máquina do Estado para financiamento eleitoral.

Antes restrito aos redutos oposicionistas e às manifestações de rua, o impeachment também virou assunto para peixes graúdos da política nacional. O ex-presidente Fernando Henrique rejeita a tese do afastamento da presidente. Ele rebate, também, comparações do governo Dilma com o de Collor nas relações com o Congresso. Para o tucano, Collor fez a opção de se isolar do Legislativo e Dilma errou ao tentar domesticar aliados por métodos de cooptação. “Tirar a presidente da República não adianta nada”, disse. Muito próximo de FHC, o filósofo José Arthur Gianotti, outro tucano histórico, afirma que o impeachment é um processo político, e só vai acontecer se houver interesse de um grande grupo de se apropriar do poder, com uma desculpa jurídica muito forte, que o sistema seja obrigado a aceitar. “Teremos Dilma à medida que o PMDB, com os corruptos e os sobreviventes, a segurarem.” Na segunda-feira 9, a própria Dilma tratou do tema durante entrevista coletiva. “Acho que há que caracterizar razões para o impeachment e não o terceiro turno das eleições. O que não é possível no Brasil é a gente não aceitar a regra do jogo democrático”, afirmou.

Fotos: Claudio Versiani; Antonio Cruz/Agência Brasil, WILSON PEDROSA/AE; Givaldo Barbosa/ Ag. O Globo 


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