David é um garoto que qualquer um adoraria ter como filho. De manhã, antes mesmo de sua mãe tirar a camisola, lá está ele de pé, cabelo penteado, falando bom-dia com sorriso nos lábios e perguntando como quer o café. À noite, sem choro ou cara feia, ele se enfia debaixo das cobertas e descansa os olhos no teto, imerso em felicidade. Mas David não é um menino igual aos outros. Não tem fome, não sente frio, não dorme, não envelhece. É um meca (de mecânico), robô de última geração, programado para amar os pais incondicionalmente. David está na companhia dos efeitos espetaculares do novo filme de Steven Spielberg, A.I. – inteligência artificial (A.I. – artificial intelligence, Estados Unidos, 2001), cartaz nacional na sexta-feira 7, como protagonista de uma história fascinante, porém amarga, já que na saga deste Pinóquio futurista os humanos não costumam retribuir amor com tanta devoção.

O projeto de A.I. foi um sonho acalentado por mais de duas décadas pelo cineasta americano Stanley Kubrick (1928-1999), que, sete anos atrás, escolheu o mago do cinema de entretenimento para torná-lo real. Kubrick argumentava que a história era perfeita para a sensibilidade do criador de E.T. – o extraterrestre. É verdade. Spielberg gastou US$ 90 milhões para ambientar sua fábula high tech numa Terra afogada pelo degelo das calotas polares. O visual assombroso inclui uma Nova York submersa, cuja vista aérea só deixa ver o topo de arranha-céus e a tocha da Estátua da Liberdade. Neste sombrio conto de fadas, o equivalente ao boneco de madeira inventado por Gepetto e que queria ser gente é um andróide de traços humanos perfeitos, interpretado pelo ator Haley Joel Osment, 13 anos, o mesmo de O sexto sentido. Mas seu criador, o professor Hobby (William Hurt), não tem o ar bondoso e bonachão de Gepetto. Hobby é presidente de uma corporação especializada em robótica, a Cybertronics Manufacturing, e tem o discurso tipicamente frio dos cientistas.

Biônico – São fábricas do gênero que fazem robôs para substituir a mão-de-obra humana. Elas são comuns numa sociedade marcada pelo rígido controle populacional. Monica (Frances O’Connor) e seu marido, Henry (Sam Robards), por exemplo, só puderam ter um filho. Ele é Martin (Jake Thomas), que sofre de uma doença grave e foi congelado até que se descubra a cura. Para consolar a mulher, Henry, funcionário da Cybertronics, decide testar em sua casa a mais nova invenção de sua empresa – um David. A primeira parte do filme, que mostra o cotidiano do menino biônico no seu novo lar, tem toques de humor e perplexidade. Sem ter a consciência de que é uma máquina, David começa a imitar hábitos humanos como a estimulante brincadeira de sentar-se à mesa e levar os talheres à boca. Osment está perfeito no papel. Encarna um “meca” sem parecer ridículo. “Vire os olhos primeiro, depois a cabeça. Nunca pisque”, disse, em recente entrevista, revelando seu truque para parecer um robô de verdade. O espectador concordará. Seu acesso de riso nada humano diante da mãe comendo um espaguete é de dar frio na espinha.

É uma cena ao mesmo tempo banal e grotesca. Foi filmada por um Spielberg completamente contaminado pelo estilo frio e cerebral de Stanley Kubrick, que ficou obcecado pela história ao ler na revista Harper’s Bazaar, em 1969, o conto de ficção científica Superbrinquedos duram o verão todo, de Brian Aldiss. A vontade de transformar a idéia genial numa versão sci-fi de Pinóquio surgiu tempos depois, quando o cineasta contratou uma escritora especialista em contos de fadas. Kubrick pretendia usar um robô de verdade, já que demoraria anos para acabar o filme e, neste período, qualquer ator mirim inevitavelmente mudaria de aparência. Com seu conhecido perfeccionismo, o diretor de De olhos bem fechados chegou a testar alguns protótipos, mas achou o resultado medonho. Quando viu Parque dos dinossauros em 1993, teve certeza de que Spielberg tinha nas mãos a tecnologia necessária para realizar seu projeto. Na criação de seu roteiro, o primeiro que escreve desde Poltergeist, o fenômeno (1982), Spielberg se baseou num argumento de 90 páginas – feito somente de um primeiro ato e um epílogo – e em quase mil desenhos cenográficos. “Só inventei coisas quando algo não fazia sentido para contar a história”, declarou o cineasta, que se sentiu novamente arrancando o dente do siso ao mexer no legado do mestre e amigo. Enquanto estavam trabalhando a quatro mãos, Kubrick exigiu sigilo completo do discípulo, sob pena de cortar uma amizade iniciada em 1979.

Bloody mary – Dizem as más línguas que até sua morte Kubrick nunca havia desistido de dirigir A.I. Na sua versão, Monica, a mãe adotiva de David, era alcoólatra. Adorava um bom bloody mary. Mas imaginar como Kubrick teria feito o filme é uma especulação inócua. É possível, contudo, detectar até que ponto Spielberg foi influenciado pelo enfoque pessimista do diretor de 2001 – uma odisséia no espaço. A cena na qual Monica se livra do meca-filho, abandonando-o numa floresta, faz o corte entre a fantasia-Spielberg e a ficção-Kubrick. A mãe toma a decisão depois de ver o filho Martin curado de volta para casa, o que gera uma rivalidade entre os dois garotos. A partir daí, a fita se torna fantasmagórica. David e seu ursinho Teddy, um superbrinquedo que pensa e fala como adulto, ficam perdidos na floresta até encontrarem Gigolo Joe (Jude Law), um meca-amante de última geração, feito para a satisfação sexual de mulheres solitárias e, segundo o ator, muito “mais sinistro” na visão kubrickiana.

No bosque, os amigos andróides e uma centena de robôs obsoletos são perseguidos e caçados por humanos. Eles os levam à Feira de Peles, um horripilante coliseu movido a heavy metal, onde máquinas falantes são sacrificadas com banho de ácido. David, o ursinho e Joe conseguem escapar. Partem para a esfuziante Cidade Vermelha, capital do prazer e do pecado, em busca da fada azul, numa aventura com ingredientes de Blade runner – o caçador de andróides e O mágico de Oz. Foi ouvindo a mãe contar a história de Pinóquio para o filho verdadeiro que David fica sabendo dos poderes da fada de transformar um boneco em um humano. Assim, ele ganharia de volta o amor da “mãe”. A.I. tem seus momentos piegas e é também longo demais no seu epílogo. Mas, gostem ou não, é puro Spielberg em mais um esplêndido arroubo de imaginação, com a genialidade genética de Kubrick.