Acordes orientais parecem anunciar uma canção alienígena no repertório de Maria Bethânia, logo na primeira faixa de seu mais recente álbum Maricotinha. Mas rapidamente as cordas executadas por Jaime Além – que divide a produção do disco com Guto Graça Mello – fazem uma pequena referência ao Nordeste e ela, a Abelha Rainha, potente, entoa Dona do dom, como se fosse preciso dizer de quem se trata no título da canção assinada por Chico César. Maricotinha, também nome da música de Dorival Caymmi, que encerra o CD, está sendo lançado como comemoração atrasada dos 35 anos de carreira de Maria Bethânia, iniciada em 1965, quando foi convidada a substituir Nara Leão no show Opinião. À sua maneira, em vez de gravar uma seleção de sucessos absolutamente vendáveis, com criatividade Bethânia optou por um fecho de canções inéditas – 11 num total de 14 –, fato raro hoje em dia entre as nossas melhores cantoras.

Mais uma vez a soberana dos palcos acertou, fazendo uma viagem musical ao interior do País e às melhores maneiras de cantar o amor. “Escolho aquilo que gosto e me comove”, disse ela a ISTOÉ. “Recebo sempre centenas de fitas e posso dizer que tanto a música quanto a cena musical brasileira estão numa fase riquíssima.” Bethânia afirma que muita gente boa ficou de fora. Cita, por exemplo, a novata Simone Guimarães, a quem classifica de excelente cantora e compositora sofisticadíssima. “Tem gente que faz música pensando em me agradar. Essas pessoas não me tocam, o trabalho soa falso.” Sorte, então, de quem já conquistou o furacão emotivo de Maria Bethânia. Entre os felizardos está Adriana Calcanhoto, que comparece com a derramada Depois de ter você. “É uma música maravilhosa, que digo que é para tocar em motel”, brinca Bethânia. Na sequência encontram-se Juntar o que sentir, do sumido Renato Teixeira – na qual a intérprete surge na sua essência, intensa, passional como a letra de rompantes –, e O canto de dona sinhá (toda beleza que há), de Vanessa da Mata, autora de Força que nunca seca, parceria com Chico César e nome do álbum gravado por Bethânia em 1999. Em O canto…, a intérprete divide os vocais com o mano Caetano Veloso e abre espaço para um belo time de violões e viola que remete ao Centro-Oeste, região da compositora mato-grossense.

Antecipa-se à faixa a quase inédita A moça do sonho, tirada da trilha sonora do musical Cambaio, de Chico Buarque de Hollanda e Edu Lobo. “Adoraria ter uma canção inédita do Chico, mas sei que ele é muito ocupado, inclusive com sua carreira de escritor. Só que ele me ligou dizendo que das oito canções de Cambaio tinha escolhido esta para eu cantar”, conta. “Imagine minha felicidade de ter uma música nova do Chico e ainda mais escolhida por ele para a minha voz.” Bethânia tem muito mais motivos para estar feliz. Aos 55 anos, ela continua impressionando com suas interpretações e atitudes. A prova é a feliz ausência do previsível bolo musical comemorativo. Para marcar a data, apenas referências sutis: o cabelo preso à moda da época de Carcará, na foto da capa do disco, e, no meio do encarte, uma lembrança jovial e setentista da nudez hippie, clicada no colorido ano de 1971.