O sobrado da fictícia Florença, por onde a jovem Anita transita sua nudez, inocência e sensualidade, é pequeno para a quantidade de tabus que a minissérie global Presença de Anita, adaptada por Manoel Carlos, está jogando no colo da família brasileira. O telespectador está levando para a cama não só o imaginário despertado pelo intenso e mórbido affair entre a doce e demoníaca protagonista, vivida pela estreante Mel Lisboa, 19 anos, e pelo atormentado quarentão, encenado por José Mayer, 52. O sexo, a masturbação, o preconceito racial, o voyeurismo e a mulher libertária mexem num campo minado e se traduzem em incômodo, frisson e até patrulhamento. Presença de Anita se tornou irresistível aos olhos do público, seja para falar bem ou mal da obra do escritor paulista Mário Donato, lançada em 1948, sete anos antes de o russo Vladimir Nabokov imortalizar Lolita como sinônimo de ninfeta sedutora. A prova disso são os altos índices de audiência registrados para o horário (média de 32 com picos de 37) e as conversas de botequim sobre os sentimentos de repulsa e de desejo provocados por Anita.

Para se ter uma idéia do sucesso, o livro de Donato, que se tornou maldito por sua ousadia, foi reeditado pela editora Objetiva há um mês e já vendeu sete mil exemplares. Na mesma carona, segue Manoel Carlos, que, antes mesmo do último capítulo, colocou nas bancas o roteiro da minissérie, revelando o fim trágico dos amantes. Aliás, a adaptação de Maneco está com a Rede Globo há dez anos. Mas, para aquela época, Anita era impensável na programação da vênus platinada. “A história é uma explosão de sensualidade e paixão. Ama-se para valer, com total entrega, e o público se interessa por essas demonstrações fortes de sentimento”, resume Manoel Carlos, criticado por abusar das cenas de nudez, sexo e até do cigarro. Para os antitabagistas de carteirinha, a resposta foi dada pela protagonista no capítulo de quarta-feira 22. Questionada sobre os males do fumo, Anita disparou: “Viver dá câncer.” Criticado por criar um exemplo subversivo para os jovens, foi taxativo: “Isso tem o mesmo cheiro do patrulhamento que faziam por conta da personagem Capitu, de Laços de família. Algumas pessoas achavam que as mocinhas iam sair por aí se transformando em garotas de programa. O público é mais perspicaz, mais sensato que os patrulheiros de plantão.” Mas o que vem incomodando é o fato de o espectador encarar a cada cena o objeto do seu desejo. Seja o de ser uma Anita, que faz suas próprias regras, ou o de desfrutar dela. O professor do Instituto de Psicologia da USP Aílton Amélio, autor do livro O mapa do amor, avalia que o fato de o personagem Fernando Reis (Mayer) se envolver com uma menina da mesma idade de sua filha “tem algo de inapropriado, de incestuoso e também de excitante. Mas ninguém gostaria que o mesmo acontecesse com a própria filha”, afirma.

O desejo, ainda que no imaginário, de um homem por uma jovem tem justificativa ancestral. As mulheres podem achar que se trata de uma visão machista, mas a beleza física feminina relacionada à fertilidade é um atavismo. “Como nos primórdios da humanidade, os homens continuam, de forma inconsciente, procurando as mulheres com finalidade reprodutiva”, afirma a psicobióloga Lucila Souza Campos. “Mas isso deve ser bem lá no inconsciente do inconsciente”, diverte-se Mel, que não entende muito o porquê da fascinação masculina pelas Anitas. A jovem atriz ressalta que o que mexe com o imaginário das pessoas é o que na personagem representa. “Trata-se do enfrentamento, da libertação, da amoralidade, da ausência de regras. Existe na mulher os dois lados: a Anita é Lilith, o mito de mulheres poderosas que estão relacionadas às forças sombrias. Devoradoras, irreverentes e independentes. Já Lúcia Helena (mulher de Nando, vivida por Helena Ranaldi) é a Eva. O público se identifica com as duas”, analisa a atriz. Mel namora há um ano e cinco meses o músico Cássio Sá, 24 anos, e o máximo que ousou experimentar foi uma relação com um homem dez anos mais velho: “Para viver uma diferença tão grande de idade é preciso que ambos tenham uma cabeça muito boa.”

Para o psicanalista carioca Luiz Alberto Py, 61 anos, a diferença de idade é um problema, mas a falta dela também pode ser. Py é casado há 13 anos com Maria Cecília, 32 anos. “O pai de Ciça era meu amigo e eu a conhecia desde criança, mas na minha festa de 48 anos comecei a olhar para ela de outra maneira. Era uma jovem adulta, apesar dos 19 anos”, conta ele, que tem dois filhos com Cecília que brincam com os seis netos. José Mayer, o homem mais invejado do momento, diverte-se com a “santa inveja”. “Durante uma gravação em Valença (RJ) ouvi de um senhor: ‘Quando se cansar do papel eu me candidato!’”

Bem ao gosto do autor Mário Donato, Anita é uma costura de várias mulheres, todas de vanguarda, que passaram pela vida do escritor. “Eu, com 56 anos não me escandalizo com as cenas. Acho hipocrisia de quem critica”, dispara Vânia de Mello Malta Cardoso, sobrinha de Donato. Como Manoel Carlos, Vânia leu o texto do tio às escondidas antes dos dez anos. “Isso não me prejudicou e olha que a imaginação pode ser mais chocante que as imagens de tevê. Duvido que algum adolescente de hoje se choque mais do que eu na época, dentro da minha solidão de contraventora”, reage.

Ser identificada com quem subverte a ordem não é problema para Mel, que está muito confortável no papel de Anita. Assediada na rua, ela não se surpreende por ser confundida com a personagem. “Não sou uma atriz conhecida. Para a maioria eu sou Anita. Mas aos poucos estou me mostrando. Sou muito diferente dela”, afirma. A jovem atriz gaúcha criada no Rio, que carrega no corpo piercings e tatuagens, surpreende pela maturidade. “Conversei com Maneco sobre a complexidade de Anita e concluí que depois dela encaro qualquer coisa”, avisa. A moça já recebeu convite para posar nua na Playboy, mas, por enquanto, só aparecerá em fotos sensuais no site Paparazzo, dentro de 15 dias. O que mais tem entusiasmado a atriz são as cartas que recebe. “São todas muito carinhosas. O público gosta de Anita, apesar do lado demoníaco dela. Tem mãe que pede até autógrafo para os filhos pequenos”, espanta-se.

Antes de perturbar os brasileiros com sua presença, Mel estava vivendo o que a mãe, a astróloga Cláudia Lisboa, definiu como uma crise de talento. Mel dedicava-se apenas à Faculdade de Cinema, na Universidade Federal Fluminense (UFF). “Três dias antes de ser convidada para fazer o teste, ela me disse: ‘Mãe, tô em dúvida de tanta coisa. Queria ter um talento.’ Cheguei a sugerir que ela diminuísse as matérias na faculdade e voltasse a dar espaço para o lado atriz, que precisava ser resgatado.”

Com o seu desempenho na minissérie, Mel não tem mais dúvidas de seu talento. Em outubro já estará fazendo novos testes para novelas que vão ao ar em 2002. Mas o poder de Mel-Anita é tanto que ela está lançando moda. A exemplo das meias Lurex de Sônia Braga em Dancing Days, a venda de isqueiros inglês Dunhill – iguais ao de Nando – subiu mais de 40%, apesar de custar R$ 600. “Os que compram o isqueiro pedem também o monograma, tal qual o do personagem de Mayer”, disse Carlos Nishiyama, gerente da empresa em São Paulo. Só falta agora as mulheres saírem à caça de uma “Conchita”, a bailarina espanhola de gesso, com quem Anita divide seu último suspiro e uma ardente vingança ao som de Ne me quitte pas (não me deixe), na voz definitiva de Maysa.

Colaboraram: Celina Côrtes (RJ) e Ines Garçoni