Nenete de Windsor e amigos tinham acabado de chegar da Bahia. Estavam em Juiz de Fora, cidade da Zona da Mata mineira, com centenas de ladeiras, fisicamente feia, mas com pessoas gentis e bonitas na média. Era o ano de 1981 e Nenete iria participar da quinta edição do Miss Brasil Gay, que se tornaria peça importante no calendário local e na semana passada chegou à sua 25ª versão. Na tarde do Dia D, passeando pelas movimentadas ruas do centro, foram surpreendidos por uma chuva de granizo. Sem nunca terem visto semelhante manifestação climática, saíram em debandada achando que a população, descontente com a presença de um grupo de homossexuais, havia se reunido para atirar gelo sobre eles. Passado o susto, veio a glória. Naquela noite Nenete de Windsor – que é homem e se casou com mulher – foi coroada Miss Brasil Gay e entrou para a galeria da fama que até hoje ilustra o ingresso para quem paga R$ 260 por uma mesa e R$ 20 para ficar espremido nas arquibancadas do ginásio do Sport Club de Juiz de Fora. Incluído um chá de cadeira de 3h15 com que o público foi brindado até o início do enfadonho concurso ocorrido no sábado 18, quando a rainha de 2000, Michelly X – “o x é em homenagem a Xuxa” – passou o cetro nacional à representante de Goiás, Alessandra Vargas, 28 anos. “É um sonho de infância que vi realizar”, disse ela.

Para quem vai em busca de diversão, no entanto, seja público setorizado ou não, o melhor não acontece no evento, versão completamente out of fashion, baseada nos jurássicos desfiles de misses que, nas décadas de 50 e 60, paravam o País. O freje de verdade vem da manifestação popular na manhã e na tarde do sábado do concurso. Aí sim vê-se o comando alegre em ação e em sintonia com a população que, contrariando as normas do Estado brasileiro mais conservador, é totalmente receptiva às estripulias das drag queens temporariamente imigradas de todas as partes do Brasil. Ao meio-dia em ponto, a queen das drags, Isabelita dos Patins – menos conhecida como o ex-auxiliar administrativo Jorge Iglesias, 53 anos, argentino naturalizado brasileiro –, depois de mais de duas horas de produção, estava prontésima numa roupa “avaliada em R$ 3 mil”. Era um vestido bordado com milhares de lantejoulas na parte de cima e quilos de plumas na saia semelhante aos tutus das bailarinas. “Já fui um cisne, hoje me sinto uma pata”, confessou. Nas mãos, outra vertigem de simplicidade. Unhas à Maga Patalógica douradas e oito anéis, três deles de legítimo pedigree. “Este aqui quem me deu foi a Elke Maravilha, este outro foi tirado de uma roupa da Marta Rocha e este outro pertenceu a ninguém menos que Carmen Miranda”, contava, orgulhosa.

Descontração – Isabelita foi a presença mais assediada no calçadão da rua Halfeld, assim batizada em homenagem ao engenheiro alemão Henrique Guilherme Fernando Halfeld, considerado um dos fundadores da cidade de 474 mil habitantes, dona de um PIB de R$ 3,2 bilhões e renda per capita de R$ 6,2 mil. Com o relativo conforto que estes números proporcionam, a população se aboletou nas mesas dos bares desde as primeiras horas da manhã, consumiu centenas de litros de chope e se divertiu a valer com as irreverências do povo gay mais descontraído. Não havia adulto ou criança que não se encantasse com as penas e brilhos de Isabelita. “Vem tirar foto com a titia, vem. Sou a Xuxa amanhã”, brincou ela. Ciente da sua popularidade, Isabelita carregava uma bolsa lotada de filipetas com sua foto e uma dedicatória impressa no verso. “O povo quer”, justificou, para em seguida deixar confusa a cabecinha de uma outra menininha. “Olha para mim senão eu fico com seu pai, hein!”

Mas ela não era a única a pulverizar frescura e strass. Havia gente vestida com uniforme prateado de guarda acionando sirene de polícia, de enfermeira do funk, de vaca sexy, de Margie Simpson, enfim, uma lou-cu-ra! Em meio ao frenesi, destacava-se Kaka di Polly, há 21 anos personagem vip no underground paulistano. Kaka faz a linha Divine, aquele travesti imenso dos inacreditáveis filmes de John Waters. Durante a festa popular da rua Halfeld, ele usou seis dos 15 trajes que trouxe numa bagagem pesando mais de 60 quilos. Logo pela manhã ressaltava suas formas dentro de um modelito apertadíssimo, sob o qual trazia um maxipar de peitos pelo menos quatro vezes maiores que os da cantora country Dolly Parton. Mais tarde desfilou num vestido confeccionado com folhas de plástico da planta comigo-ninguém-pode. E, para arrematar, lá pelo entardecer, se meteu num pretinho básico que deixava o imenso bumbum inteirão de fora. Maridos, esposas, jovens, crianças urravam ao vê-lo passar. “Existem mulheres altas, magras. O meu exemplo é mostrar às pessoas que não há diferença na diferença”, justificou ele.

Menos exagerada, a top drag de São Paulo Salete Campari, 32 anos, há 16 presença obrigatória na concorrida festa gay, fazia malabarismos com seu leque. “Venho aqui para me divertir. O carinho que as pessoas de Juiz de Fora têm com a gente é incrível”, dizia ela, já vestida como Marilyn Monroe em O pecado mora ao lado, depois de ter usado 11 roupas e deixado metade dos homens do pedaço completamente enlouquecidos ou envergonhados com suas brincadeiras. Num astral oposto, no Parque Halfeld, onde aconteciam shows de encerramento do Rainbow Fest – a parte mais politizada dos dias festeiros, organizada pelo Movimento Gay Mineiro (MGM), com palestras, filmes e debates –, o escritor paulista João Silvério Trevisan, habitualmente discreto e elegante, olhava ressabiado toda aquela chuva de purpurina. “A visibilidade, o espírito de comemoração são pontos cruciais, mas tenho minhas dúvidas se social e culturalmente isto tenha a repercussão que necessita”, disse. “Não sei se a mentalidade machista brasileira muda um pouco depois da festa.” Alheia a qualquer intervenção política, o travesti de Sorocaba Natasha Dumont, 23 anos, Alexandre Diniz na identidade, atriz pornô e “diva transexual do milênio”, só se preocupou em mostrar sua impressionante beleza morena, adornada por suaves olhos verdes, nos acontecimentos internos. “Já nasci com cabeça e aura femininas. O corpo a gente muda”, segredou. “Comecei a tomar hormônio com 13 anos, que pegava da minha mãe.”

Imaginação – Enquanto isso, os concorrentes ao Miss Brasil Gay 2001 – que não são travestis e sim transformistas, que fique bem entendido – se escalpelavam de nervosos, dentro de seus quartos de hotel transformados em salão de cabeleireiro, barracão de escola de samba, camarim e o que mais a imaginação desta gente permitisse. O maquiador e cabeleireiro Alexandre Miranda do Nascimento, 26 anos, era dos mais tranquilos. ISTOÉ acompanhou sua transformação em Fabiane Kaufmam, Miss São Paulo, uma das 16 representantes oficiais, já que as 12 restantes não eram necessariamente vindas de seus respectivos Estados. É um trambique da organização para cobrir as vagas dos locais que não mandam candidatas. A vencedora Miss Goiás, por exemplo, veio do Rio de Janeiro.

Durante a sessão de pintura do cabelo para combinar com o tom da peruca, Alexandre contou que seu traje típico de 3,20 m de altura e 50 quilos, que custou R$ 2 mil, confeccionado pelo carnavalesco da X 9 paulistana Bruno Oliveira, não coube no ônibus vindo de São Paulo. Teve que viajar no teto de uma van. “Entro no concurso por pura satisfação do ego e também porque abre portas para eu fazer shows em outros lugares”, confessa. Como Fabiane, ela já ganhou cinco títulos. Mas, desta vez, nem os R$ 6 mil investidos na produção total, nem o make up feito pelo ex-maquiador do SBT Sandro Hefner, nem sua beleza ajudada por quilos de pancake e enchimentos por todo o corpo o levaram ao cobiçado posto. Fabiane/Alexandre teve que se contentar com o terceiro lugar. E a esta altura, às 5h10 do domingo 19, não havia maquiagem que segurasse qualquer babado. Quase todas as 5.800 pessoas que lotavam o Sport Club haviam ido embora, até mesmo as drags mais famosas. Kaka di Polly foi uma das primeiras. Estava absolutamente im-pos-sí-vel carregar um vestido preto de placas de plástico e tule pesando 15 quilos. Pensa que a vida é fácil?