Nos dias quentes, o calor é insuportável. Se faz frio ou venta, a fragilidade dos barracos fica ainda mais evidente. Quando existem, as ligações de luz, água e esgoto são clandestinas. Debaixo dos viadutos paulistanos, expostas a toda espécie de intempérie, vivem quase seis mil pessoas. Nos últimos dias, um novo ingrediente foi acrescido ao rol de instabilidades que faz parte de seu cotidiano. Elas estão prestes a ser removidas e, entre as opções oferecidas pela prefeitura, estão suítes em hotéis. Com orçamento de R$ 4,5 milhões, o inusitado programa deve durar de 12 a 18 meses, até que se encontrem habitações definitivas.

Os detalhes do programa ainda estão sendo acertados, mas o fantasma da remoção compulsória e rápida começou a inquietar os sem-teto desde que um incêndio culminou com a interdição do viaduto Antártica, na zona oeste de São Paulo, no mês passado. Alojados provisoriamente em um albergue na região central da cidade, os 86 antigos moradores do viaduto são os primeiros da lista de potenciais hóspedes dos chamados hotéis econômicos. A maioria dos sem-teto, porém, não aprova a idéia. “Com esse dinheiro, a prefeitura bem que poderia alugar casinhas de dois cômodos”, sugere a coordenadora do grupo, Elza Neves, 46 anos.

Para as famílias, os maiores inconvenientes dos hotéis são a falta de espaço para as crianças e para guardar seus pertences, além da impossibilidade de cozinhar. Mesmo as pessoas que vivem sozinhas, alvo preferencial do programa, resistem à proposta de mudança para um hotel. “Prefiro continuar ao lado dos meus vizinhos”, diz Izabel Flavio, 38 anos, catadora de materiais recicláveis, que há três anos vivia sozinha sob o viaduto Antártica.

Codornas – Na escala de prioridades da prefeitura também estão casais sem filhos, como Renata e Celso. Aos 23 anos, um sorriso de propaganda de pasta de dente, Renata é loira de olhos azuis. Mora num lugar onde jamais se imaginaria encontrar alguém com seu perfil: um viaduto que cruza o rio Tietê, sob um pontilhão de trem, numa casa de papelão, plástico e madeira que não chega a ter dez metros quadrados. Ela garante que é feliz sendo pobre, muito pobre. É apaixonada pelo marido, que trabalha como “chapeiro”, o ajudante eventual de motoristas de caminhão. Tem uma cama de solteiro, onde pode dormir bem pertinho de Celso, uma televisão, um aparelho de som achado na rua, um fogão, pequenos objetos de decoração e dois cachorros. No quintal minúsculo onde cria galinhas e codornas tem ainda um coelho e um galo que canta como se estivesse no campo. “Eu gosto de ser pobre e não me mudaria daqui, onde vivo há dez anos, de jeito nenhum”, diz. Hotel? Nem pensar.

Renata nasceu no Embu e perdeu a mãe quando era menina. Violentada pelo pai, sumiu de casa, teve dois filhos que a Justiça não lhe permite criar e encontrou em Celso o seu esteio. A água ela pega de um centro de policiamento de trânsito que tem ali perto. O banheiro não passa de um penico e o banho diário é numa banheira branca que ela coloca no meio da casa. O varal, com roupas que fariam inveja à brancura de Omo e Ariel, avança pelo terreno que separa a pista lateral da marginal do rio Tietê da pista principal. O casal tem amigos que moram sob um viaduto ao lado, come arroz com cenoura como se fosse um banquete e não cogita em hipótese alguma matar a fome com sua criação de galinhas e codornas.

Bruce Lee e Dick – Bem perto dali, quando a marginal do rio Pinheiros está entrando no Tietê, dona Dalva, 33 anos, sete filhos com o marido Luiz, amaldiçoa o ex-prefeito Celso Pitta por ter forçado a família a se mudar para um cômodo com banheiro (sem cozinha) em Guaianazes, na zona leste. Ela pega papelão nas ruas com uma carroça puxada por cavalo. Ele faz casinhas de madeira que custam a partir de R$ 15, podendo chegar a R$ 1 mil, até mais, dependendo do gosto do freguês. Seu próprio barraco, semidestruído, continua lá. Agora os dois quartinhos são ocupados pelos pangarés da família. Os cachorros, Bruce Lee e Dick, também foram para Guaianazes. Todos querem voltar para debaixo do viaduto, na casa onde o pôster de um toureiro espanhol ainda enfeita a fachada. “Nós queremos voltar”, diz ela, enfurecida com os políticos que “tiveram a maldita idéia de tirar a gente daqui”. A família está amontoada num corredor que Pitta chamou de casa.

O temor de serem transferidos para um lugar pior do que vivem atualmente é o que mais assusta os moradores da favela Tiquatira, que se espalha debaixo do viaduto General Nilton Tavares, o mais populoso da cidade. Com três mil habitantes, o suficiente para povoar uma cidade do interior, a favela é um aglomerado de barracos sem a menor infra-estrutura, na zona leste. Há mais de uma década em Tiquatira, Quitéria Laura do Nascimento, 38 anos, até concorda com a desocupação do lugar, mas duvida que existam moradores interessados em viver num quarto de hotel. “Nós precisamos é de um lar”, defende. “Por pior que seja, aqui cada um tem o seu próprio canto.” Para os padrões locais, Quitéria é uma latifundiária, pois é dona de sete cômodos, onde vive com cinco filhos. A melhor parte da “casa” é destinada ao pequeno comércio de miudezas que ela montou desde que se separou do marido, há oito anos. “É aqui que tiro o sustento da família, pois a pensão que recebo é de R$ 160”, esclarece.

Para famílias com mais de um filho, como a de Quitéria, a prefeitura está buscando outras opções de alojamento, como prédios desocupados. Os hotéis serão destinados apenas aos que vivem sozinhos ou a casais com até um filho. Embora o programa esteja provocando o maior alvoroço entre os sem-teto, a prefeita Marta Suplicy garantiu na semana passada não ter pressa em concretizá-lo. “Não podemos tirar ninguém do viaduto sem, no minuto seguinte, colocar uma quadra de esporte, alguma coisa no lugar”, disse Marta. “Se não, tem o trabalho de tirar uma família e vir outra no dia seguinte.”

Gambiarra – Se dependesse apenas dos donos dos hotéis econômicos, o programa seria implantado na maior rapidez. “Mesmo cobrando em média a metade do preço, para muitos essa é a oportunidade de sair do vermelho”, afirma José Francisco Vidotto, da direção do Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares. Foi o sindicato que intermediou a negociação entre a prefeitura e os hotéis, disponibilizando para os sem-teto, mediante pagamento adiantado, quartos duplos com diária de R$ 10. Um dos primeiros a assinar o contrato, o Hotel Nau, no centro, ofereceu dez suítes para o convênio. Todas com banheiro, tevê, ventilador e telefone.

Embora não sejam a maioria, existem sem-teto loucos para conhecer ao vivo a vida num hotel. Um exemplo são os que moram sob um viaduto da avenida Santo Amaro, na zona sul. Eles não passam de 12 pessoas, a maioria jovem. Todos catam papel. Têm um sofá, reservado para a jovem Vânia, grávida de três meses. Como toda a família que fez sob o viaduto, Vânia topa ser transferida para um hotel. Tudo o que eles imaginam sobre esse tipo de vida é o que vêem nas novelas da Globo, a que assistem diariamente, assim que as luzes do viaduto se acendem, acionando a gambiarra elétrica da “casa”.